Este artigo revela a boémia jornalística na Lisboa nos anos vinte do século passado, quando a República vivia numa situação de conturbado confronto entre os que defendiam as ideias conservadoras do monarquismo católico e os progressistas republicanos.
Neste ambiente de instabilidade política, em que a República dava os seus últimos passos, emigrou do Algarve para Lisboa um modesto plumitivo da província. Chamava-se Jorge de San-Basílio, e nas redações dos vespertinos lisboetas se fez gente.
Mas primeiro teve de comer o pão que o diabo amassou. Trabalhou no comércio, foi empregado de escritório, até que, por fim, conseguir realizar o seu sonho: ser jornalista. Foi amigo de poetas, artistas e escritores, políticos, anarquistas e aristocratas, tuteando com a malta da Lisboa fadista.
A sua prosápia, ar soberbo e superior, elegância de gesto, finura no trato e argúcia de argumento, conferiam-lhe uma presença de espírito a que os sobejos da causa monárquica se faziam rogados. Nunca encontrei justificação para o seu conservadorismo, nem para a sua fidelidade monárquica. O certo é que nos anos da guerra – em que o regime republicano se faz reconhecer internacionalmente e se afirmava irreversível aos olhos da Europa – o Jorge San-Basílio aparece pela primeira vez ligado à política. Fez-se sidonista.
Infelizmente a sua vida transformou-se num drama, cujo desfecho deixou os seus camaradas da imprensa lisboeta bastante pesarosos e sem explicação, nem justificação, para tão chocante desenlace.
Algarve - História e Cultura
Este Blog, da autoria de José Carlos Vilhena Mesquita, constitui um repositório de trabalhos publicados em diferentes suportes e plataformas (jornais, livros, conferências, congressos, etc), a maioria dos quais são hoje difíceis de consultar nas suas fontes originais. Por outro lado, pretende-se criar uma via de ligação e de comunicação com diferentes públicos, sendo certo que o preferencial alvo são os alunos universitários, para os quais remeto a leitura dos textos contidos neste Blog.
quarta-feira, 16 de outubro de 2024
quinta-feira, 5 de setembro de 2024
A história do Biquíni e a Praia de Monte Gordo
Costuma dizer-se, com fantasiosa imaginação, que a criação do biquíni teve origem no racionamento de tecidos e no baixo poder de compra das mulheres, durante o período da II Guerra Mundial. Se o objetivo era reduzir custos e racionalizar recursos, nada mais inteligente do que reduzir o tradicional maillot de praia aos seus dois elementos essenciais.
Na verdade, foi no decurso dos derradeiros dias da guerra, que um francês, engenheiro de automóveis, de seu nome Louis Réard, desenhou o traje de praia feminino na sua forma mais reduzida, criando assim um novo modelo, a que deu o nome de «biquíni». Lembrou-se dessa designação porque a sua criação era uma verdadeira bomba atómica no mundo da moda.
Ora, como dias antes, em Julho de 1946, os Estados Unidos haviam realizado testes nucleares na Micronésia, destruindo por completo o Atol de Bikini, nas Ilhas Marshall, no Oceano Pacífico, pareceu-lhe que esse nome poderia ser adotado pelo seu novo modelo de praia, como uma forma de homenagem, mas também de protesto, pela destruição do ambiente e pelo uso de armas de extermínio maciço.
Todavia, o projeto era tão ousado que nenhuma modelo, habituada a desfilar nos certames da moda internacional, se dispunha a usá-lo em público. Apesar de habituadas ao mundanismo da moda, as jovens modelos negaram-se a exibir o biquíni por lhes parecer de uso indecoroso e despudorado.
Para contrariar essa espécie de boicote moral, Louis Réard teve de contratar uma stripper, de corpo escultural e sem pruridos éticos, chamada Micheline Bernardini, que se dispôs a usá-lo num desfile de moda, junto a uma piscina, em Paris. Nesse dia, 11 de julho de 1946, nascia oficialmente o biquíni. O impacto visual do desfile parisiense teve um enorme estrondo na imprensa internacional, cujo escândalo social foi avassalador, tornando-se de facto numa verdadeira «bomba atómica» lançada sobre o mundo da moda.
Imoralidade e pudor
Não se pense, porém, que o biquíni alcançaria um êxito rápido e quase imediato, como é costume acontecer na moda. Bem pelo contrário. A maioria das nações do mundo livre reprovou o seu uso, restringindo-o às piscinas públicas e a certas praias menos frequentadas. E não se pense que hoje é muito diferente, porque em muitos países árabes é proibido o uso do biquíni nas praias, como se tratasse de uma afronta ao pudor e aos bons costumes corânicos.
Curiosamente, no primeiro concurso de Misse Mundo, realizado em Londres em 1951, proibiram-se as concorrentes de sequer tentarem experimentar o uso de biquíni no desfile final do certame. O argumento sustentado pelos membros do júri era, mais uma vez, o da preservação da moral e dos bons costumes.
Para que o mundo desse esse passo em frente precisava-se de uma mulher corajosa, que não tivesse medo de enfrentar a oposição dos mais conservadores e até da própria igreja, que contestava os excessos e liberdades da moda. Essa mulher, corajosa e desafiante, surgiu em 1953, durante o Festival de Cannes, na figura da jovem e deslumbrante atriz francesa Brigitte Bardot, que desceu à praia daquela famosa estância turística com um revolucionário biquíni, desenhado com motivos florais, como se a própria Eva voltasse de novo ao convívio dos mortais pecadores.
A bela diva do cinema, tem hoje 84 anos de idade. Está há muito retirada dos olhares públicos. Lembramo-nos dela pela sua deslumbrante beleza física, pela sua luta contra o uso de peles no vestuário da moda, pela sua cruzada na proteção dos animais domésticos e selvagens. Mas certamente já poucos se lembrarão que ela foi a primeira mulher a usar um biquíni em público, desafiando os falsos pudores desta sociedade de hipócritas sibaritas, em que ainda hoje vivemos.
A partir de então, as mulheres de todo o mundo passaram a usar os provocantes biquínis, cada vez mais curtos e ousados, para afirmarem a sua liberdade e a sua independência, sem medo de serem, por isso, acusadas de atrair a si os olhares concupiscentes dos homens.
O que talvez poucos saibam é que a atriz sueca, Ingrid Bergman, esteve em Agosto de 1963 na praia de Monte Gordo, numa viagem de surpresa ao Algarve. Instalou-se no conhecido Hotel Vasco da Gama, então com cinco estrelas, e desceu à praia com um provocante biquíni. Quando se soube que a actriz do filme «Casablanca» estava na praia e de biquíni, juntou-se logo um magote de gente em silêncio, mas de boca aberta. Nunca os pescadores de Monte Gordo, nem tão pouco os veraneantes, quase todos alentejanos, tinham visto uma mulher, assim, tão bela e tão provocante.
A deslumbrante apaixonada de Humphrei Bogart, no inesquecível «Casablanca» – considerado um dos melhores filmes da história do cinema – já então premiada com dois óscares de melhor actriz, acabara de filmar nesse ano, para televisão sueca, a conhecida peça «Hedda Gabler», um clássico do século XIX da autoria de Henrik Ibsen. Nela encarnava a personagem de Hedda, uma mulher fútil e ambiciosa, que casara por dinheiro com um homem que nunca amara. O desempenho desse papel deixou Ingrid bastante extenuada, pelo realismo com que interpretou as pretensões frustradas da personagem, cuja infelicidade originou, na peça, a depressão e consequente suicídio.
Na vida real, Ingrid Bergman passava também por uma situação desconfortável. Primeiro foi a relação amorosa, em 1949, com o célebre realizador italiano, Roberto Rossellini, quando ambos eram casados e tinham filhos. Depois foi o escândalo, que abalou o mundo do cinema, quando ambos foram considerados adúlteros. E nessa condição tiveram o primeiro filho.
Em 24-5-1950 casaram-se, e tiveram mais dois filhos. Essa paixão, nascida do cinema, durou até 1957, ano em que se divorciaram. Em 1958 a diva de Hollywood casou-se com o produtor de cinema Lars Schmidt, seu compatriota, com quem viajou em 1963 pela costa mediterrânica até ao Algarve.
Acrescente-se que a década de sessenta ficou marcada em Hollywood pelo género beach movie, que trouxe para o grande ecrã o biquíni como símbolo da cultura jovem, que via nas praias da Califórnia, e na música dos Beach Boys, a expressão natural da sua liberdade. Em 1963 estreou-se o filme «Beach Party», o primeiro dos cinco realizados por William Asher, nos quais se consagrou o uso do biquíni como ícone da liberdade feminista.
Multada por usar biquíni
Nunca se soube ao certo, por que razão Ingrid Bergman viajou até ao Algarve naquele verão de 1963. Pensa-se que o marido veio à descoberta dos paraísos naturais do sul peninsular, atraído pela intensa luz da orla costeira, considerada mais forte do que a de Hollywood.
Nessa altura, já se falava nas deslumbrantes praias do Algarve, de areia fina e dourada, de águas límpidas e tépidas. Pela mão de jornalista estrangeiros, e sobretudo de artistas consagrados, como Cliff Richard, Olivia Newton-John, ou Bruce Welch guitarrista dos The Shadows, que tal como outras figuras da pop music havia comprado casa em Albufeira.
A partir de 1965, com a inauguração do aeroporto de Faro, foram dezenas de figuras públicas da música e do cinema que visitaram o Algarve, sobretudo a Praia da Rocha, a costa de Lagos, e a castiça praia dos pescadores em Albufeira.
Na imprensa estrangeira dizia-se que Albufeira seria em breve a nova Saint Tropez de Portugal. E o Café Bailote era o fulcro internacional da arte e da cultura.
Ingrid Bergman quando esteve em Monte Gordo tinha 48 anos, e era ainda uma mulher de deslumbrante beleza, quando desceu à praia em provocante biquíni. Não sabia, porém, que estava num país avesso a esse tipo de liberdades. O cabo do mar, cioso do seu pequeno poder, abeirou-se da bela actriz, munido do seu caderninho de multas, e escreveu: «indecência». Entregou-lhe o papelinho e acompanhou-a até à recepção do Hotel Vasco da Gama, onde lhe foi explicado, em inglês, que havia sido multada por usar biquíni em público.
O valor da multa era comportável, apenas 2,5 escudos, ou vinte e cinco tostões, como era uso dizer-se na época. Na realidade, era inferior ao custo de um bilhete de cinema. Mas não era o preço da multa que mais importava. Era o vexame de ser multado. E nesse aspeto a acriz sentiu-se ofendida, sobretudo pelo atraso de mentalidades e pela falta de liberdade sentida no país.
O biquíni remonta à Antiguidade Clássica
Mas, será o biquíni tão assim recente como afirmam os designers da moda? Não tenho a certeza se já existiria, ou não, no tempo dos romanos uma indumentária, talvez mais para uso desportivo do que recreativo, semelhante ao que hoje designamos por biquíni.
Em frescos de Pompeia encontraram-se várias pinturas de mulheres a exercitarem-se num ginásio, praticando pugilato e luta greco-romana, usando apenas duas peças de couro para taparem as partes íntimas. Isto faz supor que as mulheres na antiguidade clássica já usavam algo semelhante aos biquínis modernos, certamente nos banhos públicos e saunas privadas, mas talvez também durante a prática dos diversos jogos e competições em que as mulheres tinham o direito de participar.
Este é um assunto que não domino, nem posso asseverar que o uso das duas peças de reduzido vestuário, a que chamamos hoje biquíni, era já usado na antiguidade. O que posso garantir é que na localidade de Piazza Armerina, na Sicília central, foi descoberta a vila imperial romana de Casale, com dezenas de mosaicos de uma beleza esplendorosa, retratando cenas da vida quotidiana no século IV depois de Cristo. Em alguns desses mosaicos vêm-se várias jovens romanas, usando apenas duas peças muito semelhantes ao atual biquíni.
Neles se observa que algumas jovens estavam a praticar luta, creio que pugilato – uma modalidade desportiva de tradição olímpica – mas noutros parecem estar a desfilar num cortejo religioso, escoltadas por outras mulheres, cobertas com tecidos transparentes, que talvez fossem as intocáveis vestais.
Sem querer especular, julgo que algo semelhante ao biquíni já era usado na civilização romana pelas mulheres que frequentavam os banhos públicos, então designados por Thermae (de cujo étimo latino deriva a palavra Termas), sendo famosas em Roma as termas de Caracalla, de Nero, de Diocleciano, de Tito e de Trajano, frequentadas diariamente por milhares de patrícios de ambos os sexos, num cenário de majestosa beleza artística, rodeada de colunas e estátuas em mármore de Carrara.
As termas públicas repartiam-se por diferentes espaços, para que os seus utentes usufruíssem de sucessivos estágios de temperatura nas águas.
Assim, passavam primeiro pelo Frigidarium, onde os utentes se banhavam em água fria, passavam depois ao Tepidarium, de águas mornas, até chegarem ao Caldarium onde as águas quentes proporcionavam o relaxamento muscular.
Associada ao uso medicinal da água e à sua fruição térmica, nasceu a ideia clássica do SPA, que mais não é do que uma sigla, cujo desdobramento significa salus per aquam, uma expressão latina que se traduz literalmente como «saúde pela água».
As mais ricas e poderosas famílias romanas, que se estabeleceram ao longo do imenso império, trataram de recriar nas suas villae residenciais um equipamento termal, de que ainda hoje subsistem restos arqueológicos visíveis um pouco por todo o nosso país.
Pela imagem do mosaico da Villa imperial romana de Piazza Armerina prova-se que na antiguidade clássica as mulheres usavam uma espécie de biquíni nas suas práticas físicas de ginásio, e, muito provavelmente, na natação. A diferença entre o passado e o presente, está na concepção e fruição do espaço da orla marítima que derivou na evolução dos tempos para o seu uso terapêutico e para o lazer.
A talassoterapia, isto é, a frequência das praias para recuperação da saúde e tratamento de doenças, foi uma das maiores descobertas da medicina do século XIX. Mas, na centúria seguinte, a praia e o mar transformaram-se num espaço de lazer, convivência e divertimento, no qual o biquíni ainda hoje impera, apesar das alternativas, inclusivamente o naturalismo, não terem tido o sucesso que muitos auguravam.
Na verdade, foi no decurso dos derradeiros dias da guerra, que um francês, engenheiro de automóveis, de seu nome Louis Réard, desenhou o traje de praia feminino na sua forma mais reduzida, criando assim um novo modelo, a que deu o nome de «biquíni». Lembrou-se dessa designação porque a sua criação era uma verdadeira bomba atómica no mundo da moda.
Brigitte Bardot, em 1953, na praia de Cannes, em bikini |
Todavia, o projeto era tão ousado que nenhuma modelo, habituada a desfilar nos certames da moda internacional, se dispunha a usá-lo em público. Apesar de habituadas ao mundanismo da moda, as jovens modelos negaram-se a exibir o biquíni por lhes parecer de uso indecoroso e despudorado.
Para contrariar essa espécie de boicote moral, Louis Réard teve de contratar uma stripper, de corpo escultural e sem pruridos éticos, chamada Micheline Bernardini, que se dispôs a usá-lo num desfile de moda, junto a uma piscina, em Paris. Nesse dia, 11 de julho de 1946, nascia oficialmente o biquíni. O impacto visual do desfile parisiense teve um enorme estrondo na imprensa internacional, cujo escândalo social foi avassalador, tornando-se de facto numa verdadeira «bomba atómica» lançada sobre o mundo da moda.
Imoralidade e pudor
Não se pense, porém, que o biquíni alcançaria um êxito rápido e quase imediato, como é costume acontecer na moda. Bem pelo contrário. A maioria das nações do mundo livre reprovou o seu uso, restringindo-o às piscinas públicas e a certas praias menos frequentadas. E não se pense que hoje é muito diferente, porque em muitos países árabes é proibido o uso do biquíni nas praias, como se tratasse de uma afronta ao pudor e aos bons costumes corânicos.
Curiosamente, no primeiro concurso de Misse Mundo, realizado em Londres em 1951, proibiram-se as concorrentes de sequer tentarem experimentar o uso de biquíni no desfile final do certame. O argumento sustentado pelos membros do júri era, mais uma vez, o da preservação da moral e dos bons costumes.
Para que o mundo desse esse passo em frente precisava-se de uma mulher corajosa, que não tivesse medo de enfrentar a oposição dos mais conservadores e até da própria igreja, que contestava os excessos e liberdades da moda. Essa mulher, corajosa e desafiante, surgiu em 1953, durante o Festival de Cannes, na figura da jovem e deslumbrante atriz francesa Brigitte Bardot, que desceu à praia daquela famosa estância turística com um revolucionário biquíni, desenhado com motivos florais, como se a própria Eva voltasse de novo ao convívio dos mortais pecadores.
Brigitte Bardot, na praia de Cannes, em bikini |
A partir de então, as mulheres de todo o mundo passaram a usar os provocantes biquínis, cada vez mais curtos e ousados, para afirmarem a sua liberdade e a sua independência, sem medo de serem, por isso, acusadas de atrair a si os olhares concupiscentes dos homens.
O que talvez poucos saibam é que a atriz sueca, Ingrid Bergman, esteve em Agosto de 1963 na praia de Monte Gordo, numa viagem de surpresa ao Algarve. Instalou-se no conhecido Hotel Vasco da Gama, então com cinco estrelas, e desceu à praia com um provocante biquíni. Quando se soube que a actriz do filme «Casablanca» estava na praia e de biquíni, juntou-se logo um magote de gente em silêncio, mas de boca aberta. Nunca os pescadores de Monte Gordo, nem tão pouco os veraneantes, quase todos alentejanos, tinham visto uma mulher, assim, tão bela e tão provocante.
A deslumbrante apaixonada de Humphrei Bogart, no inesquecível «Casablanca» – considerado um dos melhores filmes da história do cinema – já então premiada com dois óscares de melhor actriz, acabara de filmar nesse ano, para televisão sueca, a conhecida peça «Hedda Gabler», um clássico do século XIX da autoria de Henrik Ibsen. Nela encarnava a personagem de Hedda, uma mulher fútil e ambiciosa, que casara por dinheiro com um homem que nunca amara. O desempenho desse papel deixou Ingrid bastante extenuada, pelo realismo com que interpretou as pretensões frustradas da personagem, cuja infelicidade originou, na peça, a depressão e consequente suicídio.
Na vida real, Ingrid Bergman passava também por uma situação desconfortável. Primeiro foi a relação amorosa, em 1949, com o célebre realizador italiano, Roberto Rossellini, quando ambos eram casados e tinham filhos. Depois foi o escândalo, que abalou o mundo do cinema, quando ambos foram considerados adúlteros. E nessa condição tiveram o primeiro filho.
Em 24-5-1950 casaram-se, e tiveram mais dois filhos. Essa paixão, nascida do cinema, durou até 1957, ano em que se divorciaram. Em 1958 a diva de Hollywood casou-se com o produtor de cinema Lars Schmidt, seu compatriota, com quem viajou em 1963 pela costa mediterrânica até ao Algarve.
Acrescente-se que a década de sessenta ficou marcada em Hollywood pelo género beach movie, que trouxe para o grande ecrã o biquíni como símbolo da cultura jovem, que via nas praias da Califórnia, e na música dos Beach Boys, a expressão natural da sua liberdade. Em 1963 estreou-se o filme «Beach Party», o primeiro dos cinco realizados por William Asher, nos quais se consagrou o uso do biquíni como ícone da liberdade feminista.
Multada por usar biquíni
Nunca se soube ao certo, por que razão Ingrid Bergman viajou até ao Algarve naquele verão de 1963. Pensa-se que o marido veio à descoberta dos paraísos naturais do sul peninsular, atraído pela intensa luz da orla costeira, considerada mais forte do que a de Hollywood.
Nessa altura, já se falava nas deslumbrantes praias do Algarve, de areia fina e dourada, de águas límpidas e tépidas. Pela mão de jornalista estrangeiros, e sobretudo de artistas consagrados, como Cliff Richard, Olivia Newton-John, ou Bruce Welch guitarrista dos The Shadows, que tal como outras figuras da pop music havia comprado casa em Albufeira.
Ingrid Bergman, na praia com os filhos, usando bikini |
Na imprensa estrangeira dizia-se que Albufeira seria em breve a nova Saint Tropez de Portugal. E o Café Bailote era o fulcro internacional da arte e da cultura.
Ingrid Bergman quando esteve em Monte Gordo tinha 48 anos, e era ainda uma mulher de deslumbrante beleza, quando desceu à praia em provocante biquíni. Não sabia, porém, que estava num país avesso a esse tipo de liberdades. O cabo do mar, cioso do seu pequeno poder, abeirou-se da bela actriz, munido do seu caderninho de multas, e escreveu: «indecência». Entregou-lhe o papelinho e acompanhou-a até à recepção do Hotel Vasco da Gama, onde lhe foi explicado, em inglês, que havia sido multada por usar biquíni em público.
O valor da multa era comportável, apenas 2,5 escudos, ou vinte e cinco tostões, como era uso dizer-se na época. Na realidade, era inferior ao custo de um bilhete de cinema. Mas não era o preço da multa que mais importava. Era o vexame de ser multado. E nesse aspeto a acriz sentiu-se ofendida, sobretudo pelo atraso de mentalidades e pela falta de liberdade sentida no país.
O biquíni remonta à Antiguidade Clássica
Mas, será o biquíni tão assim recente como afirmam os designers da moda? Não tenho a certeza se já existiria, ou não, no tempo dos romanos uma indumentária, talvez mais para uso desportivo do que recreativo, semelhante ao que hoje designamos por biquíni.
Em frescos de Pompeia encontraram-se várias pinturas de mulheres a exercitarem-se num ginásio, praticando pugilato e luta greco-romana, usando apenas duas peças de couro para taparem as partes íntimas. Isto faz supor que as mulheres na antiguidade clássica já usavam algo semelhante aos biquínis modernos, certamente nos banhos públicos e saunas privadas, mas talvez também durante a prática dos diversos jogos e competições em que as mulheres tinham o direito de participar.
Este é um assunto que não domino, nem posso asseverar que o uso das duas peças de reduzido vestuário, a que chamamos hoje biquíni, era já usado na antiguidade. O que posso garantir é que na localidade de Piazza Armerina, na Sicília central, foi descoberta a vila imperial romana de Casale, com dezenas de mosaicos de uma beleza esplendorosa, retratando cenas da vida quotidiana no século IV depois de Cristo. Em alguns desses mosaicos vêm-se várias jovens romanas, usando apenas duas peças muito semelhantes ao atual biquíni.
Mosaico da Villa romana de Piazza Armerina, vendo-se duas mulheres supostamente em bikini |
Sem querer especular, julgo que algo semelhante ao biquíni já era usado na civilização romana pelas mulheres que frequentavam os banhos públicos, então designados por Thermae (de cujo étimo latino deriva a palavra Termas), sendo famosas em Roma as termas de Caracalla, de Nero, de Diocleciano, de Tito e de Trajano, frequentadas diariamente por milhares de patrícios de ambos os sexos, num cenário de majestosa beleza artística, rodeada de colunas e estátuas em mármore de Carrara.
As termas públicas repartiam-se por diferentes espaços, para que os seus utentes usufruíssem de sucessivos estágios de temperatura nas águas.
Assim, passavam primeiro pelo Frigidarium, onde os utentes se banhavam em água fria, passavam depois ao Tepidarium, de águas mornas, até chegarem ao Caldarium onde as águas quentes proporcionavam o relaxamento muscular.
Pormenor do mosaico romano |
As mais ricas e poderosas famílias romanas, que se estabeleceram ao longo do imenso império, trataram de recriar nas suas villae residenciais um equipamento termal, de que ainda hoje subsistem restos arqueológicos visíveis um pouco por todo o nosso país.
Pela imagem do mosaico da Villa imperial romana de Piazza Armerina prova-se que na antiguidade clássica as mulheres usavam uma espécie de biquíni nas suas práticas físicas de ginásio, e, muito provavelmente, na natação. A diferença entre o passado e o presente, está na concepção e fruição do espaço da orla marítima que derivou na evolução dos tempos para o seu uso terapêutico e para o lazer.
A talassoterapia, isto é, a frequência das praias para recuperação da saúde e tratamento de doenças, foi uma das maiores descobertas da medicina do século XIX. Mas, na centúria seguinte, a praia e o mar transformaram-se num espaço de lazer, convivência e divertimento, no qual o biquíni ainda hoje impera, apesar das alternativas, inclusivamente o naturalismo, não terem tido o sucesso que muitos auguravam.
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terça-feira, 14 de maio de 2024
A iliteracia intelectual – um paradoxo da modernidade
Neste último Natal de 2023 decidi fazer um teste sobre a nossa iliteracia intelectual, com base na retoma de uma tradição muito antiga na cultura ocidental. O teste foi muito simples e não teve outro propósito senão o de avaliar a capacidade de domínio da escrita manual, do respeito pelas tradições e das relações sociais afetivas. O teste era apenas qualitativo, e consistiu no envio de postais de Natal, através do correio, aos amigos que considero intelectualmente evoluídos, emotivos e sentimentais. O que deles aguardava era uma retribuição semelhante, e pela mesma via, tal como fazíamos no passado, ainda recente. Essa liberdade de pensar, de criar e de agilizar a escrita, perdeu-se nos anos noventa com a imperialização da informática e da telecomunicação. A máquina subjugou-nos ao ponto de já nem sabermos exteriorizar a liberdade através dos sentimentos, porque deixamos, sob a falsa ideia do progresso, que a Inteligência Artificial nos substituísse, não só no simples ato de produzir, como também no de pensar e sentir.
Grav. 1 - Primeiro postal ilustrado, Londres, 1843 |
Quem me está a ler já percebeu que em epígrafe existe um contrassenso: a iliteracia é uma defetividade dos potenciais analfabetos. Devo, por isso, esclarecer que, pessoalmente, entendo que quem sabe ler e escrever, mas é insensível à leitura e à escrita, não deixa de ser analfabeto. No velho princípio aforístico de que se perde o que se não usa.
Como os postais natalícios são uma tradição muito comum na nossa cultura, fácil se torna comprovar a desativação da mensagem manuscrita, o que dentro da arqueologia dos sentidos representa a perda da mão, como objeto da escrita e da transmissão dos afetos, da sensibilidade, da amizade e sobretudo do Saber.
Significa isto que a epistolografia – uma área que foi no passado uma fonte da história biográfica – está morta, na generalidade dos casos, apenas subsistindo ao escasso nível das mentes mais idosas, e, talvez por isso, mais infoexcluídas. A iliteracia digital é atualmente considerada como uma espécie de analfabetismo moderno. Ou seja, inverteu-se o ónus da culpa. Ignorante e desatualizado é aquele que não trabalha com os iPhones de última geração ou o que não tira o melhor rendimento dos tablets e Notebooks (computadores portáteis).
Grav.2 Postal de Natal, Londres 1848, Willi am Maw Egly |
O exercício prático do meu teste de aferição sobre a atual iliteracia intelectual consistiu no envio de 33 postais ilustrados, à moda antiga, isto é, à inglesa, uma face impressa e outra escrita. A razão deste teste prende-se com a revolução digital que facilitou a comunicação encurtou distâncias e originou a globalização, não só da economia e dos mercados financeiros, como também da educação e da cultura, notando-se, todavia, um abaixamento intelectual ao nível do primeiro mundo. As novas tecnologias incrementaram o alcance e desenvolvimento da ciência, mas diminuíram a concentração, o esforço e o sacrifício da pesquisa por parte dos mais jovens, sobretudo dos estudantes. Nos adultos notou-se a perda da leitura e do uso da escrita manual. A sociedade, na sua hierarquização por grupos socioprofissionais, nivelou-se por baixo, perdendo qualidade e exigência devido à substituição do trabalho, ainda que especializado, pela máquina e pela Inteligência Artificial. E isso vê-se claramente na perda das tradições, nos usos e costumes etnográficos e na antropologia cultural, que vem perdendo os seus padrões naturais em prol de uma homogeneização assintomática da civilização ocidental.
Só as elites parecem reservar para si as tradições do passado, no sentido de salvaguardarem as suas raízes e os seus valores morais. Assistimos hoje a uma inversão na cultura ocidental, cujas tradições têm sido paulatinamente caldeadas noutras oriundas de diferentes quadrantes do mundo.
Grav. 3 - Laura Costa, «Chegada dos Pastores» |
Origem histórica do postal de Natal
Já agora convém esclarecer o postal ilustrado de Natal, um dos mais apreciados padrões da cultura cristã ocidental, teve a sua origem histórica em Inglaterra, no ano de 1843, por causa de um simples gesto de cortesia que se transformou numa ideia genial, replicada por sucessivas gerações no mundo inteiro. O postal natalício é, aliás, uma das poucas tradições transversais à humanidade.
Com efeito, Sir Henry Cole, então director do South Kensington Museum, hoje designado como Victoria and Albert Museum, em Londres, costumava escrever na quadra natalícia dezenas de cartas aos familiares e amigos a desejar-lhes Boas Festas. Todavia, em dezembro de 1843, assoberbado de trabalho não se apercebeu que estava encima do Natal. Concluiu que não dispunha de tempo para cumprir as suas acostumadas obrigações de cortesia. Mas, num rebate de genialidade, ocorreu-lhe uma solução, rápida e eficaz. Pediu ao seu amigo, o pintor John Callcott Horsley, que desenhasse e pintasse num pequeno pedaço de cartolina, no tamanho 9x13cm, a sua família reunida à mesa da consoada, a brindar ao familiar ou amigo ausente naquele Natal. Aprovado o desenho foi a correr a uma tipografia onde encomendou dezenas de cópias a cores, com a simples mensagem «Merry Christmas and a Happy New Year to you» [Feliz Natal e um Próspero Ano Novo], deixando o verso em branco para escrever o nome e endereço do destinatário. Impõe-se, porém, salientar que ladeando a feliz cena do brinde, ao centro, com um copo de vinho (talvez do Porto), o artista incluiu duas mensagens de caridade: vestir os andrajosos e alimentar os pobres. [ver gravura 1]
Como na tipografia sobraram alguns postais decidiram colocá-los na montra à venda pelo módico preço de um xelim cada. Venderam-se mais de mil, e só não se imprimiram mais porque já estavam quase encima do dia de Natal. O certo é que dessa edição prínceps apenas se conserva pouco mais do que uma dezena de exemplares, devido ao zelo dos seus destinatários. Por ser uma peça rara e histórica, quando surgem à venda nos leilões de artes e antiguidades costumam ser arrematados por quantias exorbitantes, acima de vinte mil libras.
O gesto de Sir Henry Cole, foi depois imitado por milhares de pessoas, tornando-se numa nova tradição natalícia. A arte da cartofilia natalícia evoluiu com o tempo, em todo o mundo e em diferentes credos religiosos, sendo desde há 180 anos uma das principais tradições culturais do mundo ocidental.
A conclusão do teste
O objetivo do meu teste, estribado na simbologia do postal natalício, consistiu na comprovação de que a revolução digital emburreceu as elites e a civilização ocidental, considerada até aqui como a cultura do primeiro mundo. A leitura homogeneizou-se na “googletização” da cultura, e a escrita passou a digitar-se em código SMS, degenerando tudo isto naquilo a que os brasileiros chamam a “celularização” das relações humanas. O conceito de “googletização” significa a necessidade pelo imediato, ou a solução instantânea, mas teve como efeito prático a perda da referência e da vontade da pesquisa, o esforço da descoberta e da construção crítica. O pior de tudo isso foi a habituação à rotina, que quando interrompida ou dificultada degenera na impaciência, e na banalização da violência. Mas, esse fenómeno da violência, posso sociologicamente atribuí-lo à má distribuição da riqueza, o que nos países potencialmente ricos, embora concretamente pobres, como é o caso da Índia, do México ou do Brasil, tornou-se num verdadeiro cancro sociopolítico.
Grav. 5 Postal de Natal por Maria Keil |
Não, positivamente não. Para mim o que está a verificar-se é uma perda substancial do conhecimento crítico e da vontade de questionar o Saber. Como resultado prático deste vertiginoso progresso, assistimos à subordinação das gerações jovens, principais vítimas deste hostil processo de estupidificação das massas, através da lei do menor esforço, isto é, quanto menos leres menos sabes escrever, e quanto menos escreveres menos sabes pensar. O resultado final será a sujeição generalizada à opinião veiculada e à ordem transmitida, em oposição à qual carecemos cada vez mais de capacidades mentais, de conhecimento e de reflexão crítica para podermos discordar, debater, contrariar e contestar. A banalização da violência, por estranho que pareça, deu lugar ao conformismo e à pacificação da opinião crítica, inviabilizando ou obstaculizando a contestação racional. Daí vermos que é hoje muito fácil os jovens passarem do imobilismo conformista à radicalização do exclusivismo, do extremismo à exterminação, por não possuírem meios racionalistas de aferição das circunstâncias políticas em que se acham envolvidos.
No ano passado ainda recebi alguns cartões em troca dos que enviei. Mas, este ano, tenho a triste consciência de ter recebido apenas dois cartões de retribuição. Ao invés respondem-me por email ou pelo Messenger. Os mais novos nem respondem, porque não usam sequer o Facebook, mas antes o Instagram e outras redes sociais, que eu não uso para não banalizar o raciocínio mental nem a minha consciência crítica.
A iliteracia que tem vindo a tomar conta da Europa está à vista em tudo, até nos simples postais de Boas Festas.
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Turismo - Património e cultura
quinta-feira, 28 de dezembro de 2023
«O Direito à Felicidade»
No dia 24 de Dezembro, vulgarmente designado por dia da Consoada, vi na RTP2, pelo hora do almoço, um filme intitulado «O Direito à Felicidade». Aconselho as pessoas, inteligentes e sensíveis à cultura, a fazerem uma pesquisa na sua Box, ou no site da RTP Play, para poderem ver este filme, que é um elogio à cultura e à amizade, suscitada pela ternura da eloquência. É um filme de apenas 81 minutos, curto e incisivo, mas que nos faz doer até aos interstícios da alma, ao ponto de, por fim, os mais sensíveis, verterem uma lágrima de nostalgia, de tristeza… de vergonha.
Os nossos professores do ensino básico, nas classes onde a idade começa a despertar nas crianças o gosto pela leitura e a motivar a paixão pelos livros, poderiam aproveitar a projeção deste filme para acicatarem nos seus alunos o prazer da leitura e o deleite da descoberta. E não só, é que este filme é um retrato do nosso tempo, é uma lição de vida, com todos os defeitos e virtudes que rodeiam a nossa sociedade.
A personagem principal do filme é um livreiro, figura respeitável pela sua idade e cultura, que vende livros usados numa pacata cidade italiana. À sua volta gravitam quatro figuras secundárias: um homem do lixo, que resgata dos contentores vários livros destinados ao aterro; um empregado de bar, com aspecto primário que se revela um coração apaixonado; uma servente que procura adquirir fotonovelas para entreter a sua ignorante e fútil patroa; e um pequeno emigrante, tímido, pobre, com um ar famélico, que representa o choque de culturas suscitado pelas migrações dos tempos modernos.
O livreiro chama-se Liberto, um nome invulgar, mas muito apropriado à missão libertadora dos livros. O seu desiderato consiste em fazer com que as pessoas descubram o prazer da leitura e, sobretudo, amem os livros. No fundo do seu generoso coração acalenta a esperança de tornar a leitura num alimento quotidiano da alma, e o livro numa arma de libertação da mente humana. Um sonho quixotesco…, porque ele bem sabe que o mundo gira em torno da ambição, da ganancia e do egoísmo.
A vida solitária, tranquila e generosa deste modesto livreiro, entrecruza-se com a de uma criança do Burkina Faso, de nome Éssien, filho de emigrantes acolhidos naquela pacata cidade italiana, cujos verdejantes horizontes, matizados de diferentes tonalidades, fazem-me lembrar a deslumbrante Toscânia. Entre o livreiro e a criança africana, vai discorrer aos olhos do espectador uma pedagógica lição de amizade e de admiração mútua, em contraposição ao quotidiano racista que assola o nosso tempo. Liberto vai emprestar livros a Éssien, porque este não os pode comprar. Quando este lhos devolve assistimos a um ternurento diálogo pedagógica, que resultará num método de fomento progressivo do gosto pela leitura. Ao ver o filme, lembrei-me do meu querido pai, que usou comigo exactamente o mesmo método. E, quando eu queria dar um passo mais largo do que a minha mente permitia, ele refreava-me a avidez, dizendo: “este livro não é para já, mas fica à tua espera”. E tinha nisso toda a razão, porque sendo a leitura o meio mais acessível e eficaz de libertar o espírito, deve ser doseado na proporção da idade e da inteligência. O equilíbrio entre a compreensão da leitura e a reflexão do pensamento, permitem que o livro se transforme num veículo de transmissão do Saber e da Cultura. A escola ajuda muito no processo curricular da formação intelectual da criança, mas é no prazer da leitura e no convívio com os livros que se processa o autodidatismo, uma forma libertária de vivenciar o Saber e de progredir no conhecimento, escapando ao controlo da Escola. Nunca esqueçamos que o ensino não é livre, e que a Escola constitui em si mesma um dos mais poderosos aparelhos ideológicos do Estado.
Vejam, por favor, «O Direito à Felicidade», um filme melancólico e superiormente encantador, pela forma como demonstra que a liberdade só se alcança pela tolerância, pela inteligência, pelo respeito e, sobretudo, pelo amor. Amar é tornar livre o ente amado. E isso só se percebe no fim, quando Liberto oferece a Essien um pequeno livro, pedindo-lhe que o reserve e o consulte até ao fim dos seus dias. O título desse livro só se revela ao espectador na última imagem do filme.
Para terminar, queria chamar a atenção para o facto de não ser o livro, nem a leitura, o tema principal deste filme, mas tão só a emigração, como derradeira esperança na construção de uma vida melhor. E o que é a vida, afinal, senão uma viagem no tempo. Demonstra-o a forma dramática como Liberto se vai despedindo da vida, em silêncio e em segredo. Ao mesmo tempo que revela ao espectador as páginas de um diário manuscrito, datado de 1957, curiosamente resgatado do lixo, no qual uma jovem criada confidencia que vai partir com o noivo para a América, à procura de uma nova oportunidade de vida, através do sonho americano, uma quimera do pós-guerra.
Vejam como os nossos sonhos do passado, são os mesmos sonhos presentes, sobretudo daqueles que vivem dilacerados pela mais tirânica das opressões: a pobreza. Não há liberdade quando se vive agrilhoado no desemprego, no desconforto, na escassez, na fome e na miséria. De que vale a democracia e a liberdade, quando a pobreza domina e escraviza o cidadão eleitor...
Este filme, em suma, é uma lição que todos deveríamos aprender.
Aqui fica o link para quem deseje visionar esta encantadora metáfora cinematográfica, sugestivamente intitulada «O Direito à Felicidade».
https://www.rtp.pt/play/p12419/e737123/il-diritto-alla-felicita?fbclid=IwAR1xuj8ugf135Y6fQ6H9bVFKVA_Fp5gndejngeC7D7WCsnEou-wq5QFD6IE
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Textos pedagógicos
terça-feira, 4 de julho de 2023
A Primeira Guerra Mundial, o fim dos impérios na emergência do nacionalismo europeu
Passados cem anos desse desastroso conflito militar, que vulgarmente designamos por Grande Guerra, a Europa mudou muito, e em todos os sentidos. Desde logo na sua geografia política, com o surgimento de novos/velhos países, que desde sempre foram nações, reclamantes da sua identidade, da sua independência, do seu território e, sobretudo, da sua história. Foi a consciência e memória do passado nas pequenas nações, que suscitou a revolta contra a opressão imperialista dos grandes potentados industriais, escudados em colossais forças militares, que desencadearam na Europa a conflagração de revoluções sociais e um consequente choque de interesses coloniais internacionalistas. A Grande Guerra acendeu-se na fogueira do imperialismo e apagou-se na heróica bandeira da democracia e da liberdade. Porém, não se extinguiu… As divergências permaneceram no campo político e económico, o imperialismo dissipou-se, mas subsistiu o colonialismo. E no rescaldo das decisões mal dirimidas adivinhava-se a todo o instante o reacender de uma nova guerra, que permitisse aos vencidos, sobretudo ao orgulhoso povo germânico, obter a desforra da aviltante derrota a que ficara sujeito no «Tratado de Versailles».
Militares de cavalaria do CEP, marchando em Alcântara em direcção ao porto de embarque de Lisboa, em 1917 |
No período que precede o deflagrar da I Guerra Mundial há que ter em conta a paradoxal circunstância da Europa estar a viver um período de prosperidade. A indústria do aço progredia incontrolável e avassaladora. A euforia tecnológica desenvolvia-se em todos os sectores, nomeadamente na indústria bélica. As descobertas científicas alemãs, sobretudo na Química, desenvolveram novas indústrias nas áreas da saúde e do medicamento, nos fertilizantes e adubos, nos pesticidas e venenos. A Alemanha era, em todos os sentidos, a maior potência da Europa, em concorrência directa e em franca oposição aos interesses do velho império britânico.
Todavia, restavam do passado várias questões mal dirimidas em sede da diplomacia ocidental, as quais podemos apontar como responsáveis pelo deflagrar do conflito:
- - A disputa imperialista entre os países europeus por territórios de África e da Ásia;
- - A Alemanha tornou-se numa grande potência, ameaçando a Inglaterra até aí considerada um potentado europeu.
- - O nacionalismo cresceu e valorizou-se como ideologia entre os povos que não possuíam autonomia territorial e política, gerando-se conflitos, especialmente na região das Balcãs.
- - O imperialismo dominava a cultura ocidental e ameaçava o equilíbrio mundial.
Razões que desencadearam a primeira guerra mundial:
Dentre o variado leque de justificações, que do ponto de vista político socioeconómico, podem ter estado na origem do conflito, destacamos aqui algumas das mais importantes, que poderão ter contribuído para a abertura das hostilidades:
- A guerra “franco-prussiana” atribuiu à Alemanha os territórios da Alsácia-Lorena, muito ricos e importantes para a França.
- A Alemanha superara a Inglaterra na produção de aço, na mecanotecnia e na indústria química, tornando-se na maior potência industrial europeia.
- A Rússia era inimiga dos impérios Otomano e Austro-húngaro, porque sustentava o pan-eslavismo, isto é, a unificação dos povos eslavos que integravam esses dois impérios. A Sérvia estava do lado da Rússia porque pretendia unificar os Balcãs.
- A “paz armada” ou guerra latente, justificava a formação de alianças militares.
Arquiduque Francisco Fernando da Áustria e sua esposa, assassinados em Sarajevo a 28-6-1914 |
Desde os tempos da Reforma, que dividiu a cristandade, que a Alemanha se tornara inimiga da França, e por arrastamento da Inglaterra anglicana. Por sua vez, divergências mercantis e litígios territoriais, tornaram a Rússia inimiga dos impérios austro-húngaro e Otomano. Por essa razão a Alemanha juntou-se aos austro-húngaros e à Itália, que depois mudou de lado, passando para a Tríplice Entente. A França, a Inglaterra e a Rússia, três impérios aparentemente incompatíveis, pelas suas históricas idiossincrasias culturais, religiosas, e coloniais, acabariam por dar as mãos numa apressada aliança militar, a Tríplice Entente, para fazer frente ao pangermanismo, uma perigosa ideologia nacionalista que pretendia unificar as nações do eixo europeu. A Sérvia simpatizava com a causa do pan-eslavismo que a colocava ao lado da Rússia, e implicitamente contra o império austro-húngaro, que entrara numa escalada de anexação dos estados balcânicos, em conexão com os interesses territoriais da Tríplice Aliança.
Faltava à eclosão da guerra uma causa próxima, que surgiu a 28-06-1914 com o episódico assassinato, em Sarajevo, do herdeiro do trono austro-húngaro, Franz Ferdinand, morto por um estudante nacionalista sérvio. As declarações de guerra sucederam-se em catadupa. Causou admiração o entusiasmo dos voluntários que se ofereciam para a guerra. Isso deveu-se ao nacionalismo que despontara na Europa. Mas também aos imperialismos, que se consubstanciavam no pangermanismo alemão e no pan-eslavismo russo.
Mapa das alianças formadas no início da I Guerra Mundial, de amarelo a Tríplice Aliança, os impérios do Eixo europeu |
Começava assim a I Guerra Mundial, um conflito há muito esperado por causa das incontornáveis dissensões entre os nacionalismo emergentes das repúblicas novas, e os imperialismos dominantes das monarquias velhas. Em 1915 a Itália entrou na guerra ao lado da Tríplice Entente. Mas foi enganada pela Inglaterra, que no fim não lhe deu os territórios prometidos em África. Compreende-se, agora, as razões que levaram Mussolini a preferir, mais tarde, aliar-se com Hitler.
A Grande Guerra dividiu-se em duas partes distintas: a fase dos movimentos e o longo período das trincheiras.
Na primeira, a Alemanha progrediu imparável até às portas de Paris. No início parecia imbatível, mas passado algum tempo o avanço militar paralisou por falta de meios logísticos, sobretudo combustível para o transporte de equipamentos bélicos. Para não recuar, o exercito alemão resolve resistir na frente de ataque escavando trincheiras. Era o fim da guerra dos movimentos, e o início da paralisante guerra das trincheiras. Centenas de milhares de soldados permanecerem, atolados na lama das trincheiras, onde foram pasto de parasitas (piolhos e percevejos), de fungos e bactérias, ao longo de três penosos anos, sofrendo momentos de angústia e de miséria, em condições infra-humanas. Uma guerra com mais de 10 milhões de mortos, milhares de feridos e mutilados. Um trauma europeu, sobretudo para a França, que foi a principal vítima do conflito, com milhões de mortos e feridos, cidades destruídas pelos bombardeamentos, e uma economia de rastos.
Tropas americanas combateram ao lado da Tríplice Entente, no auxílio da França arrasada pelos alemães |
Em 1917, ocorreram dois factos muito importantes para o desfecho da guerra: em Outubro deu-se a revolução russa, cujo novo governo chefiado por Lenine assinou um tratado secreto, designado “Glasstov”, para sair da guerra, e compensar a Alemanha com a oferta de alguns territórios. O segundo acontecimento decisivo foi a entrada dos EUA na guerra, pois tudo levava a crer que a Alemanha acabaria por vencer o conflito. Começaram por enviar ajuda médica, depois mantimentos e, por fim, numerosos contingentes militares. A adesão americana foi decisiva para a vitória da Tríplice Entente na Grande Guerra.
A 11 de Novembro de 1918, as partes beligerantes assinaram o armistício que poria termo à primeira guerra mundial. O presidente dos EUA, Woodrow Wilson, apresentou uma proposta de resolução da guerra, que ficou conhecida como os 14 pontos de Wilson. Esse documento sugeria que os países diminuíssem os seus arsenais bélicos, optassem por políticas mais transparentes, e, sobretudo, que a guerra terminasse sem vencedores, para que os países contendores assinassem um acordo de paz, sem culpar nem punir ninguém. Sugeria ainda a criação de um órgão internacional, designado por “Liga das Nações”, que asseguraria a manutenção da paz no mundo.
Essa proposta não foi totalmente aceite, porque as nações vencedoras queriam subjugar a Alemanha e obrigá-la a pagar pesadas indemnizações de guerra. Para o efeito, as nações vencedoras reuniram-se em Paris, onde subscreveram o «Tratado de Versailles», que pôs fim à primeira guerra mundial. A humilhação dos vencidos foi tão execrável que viria a constituir-se no principal motivo para a deflagração da Segunda Guerra Mundial.
O «Tratado de Versailles» determinava que a Alemanha era a única e exclusiva culpada da guerra. Definia que a Alemanha não podia ter um exército com mais de 1000 soldados, nem produzir armas, nem tanques, perdendo as colónias que tinha na Ásia e na África. Devolveu-se à França o território da Alsácia e da Lorena. Além disso, a Alemanha perdia todas as suas minas de carvão e de ferro, tendo ainda de pagar avultadas indemnizações aos países vencedores.
A Alemanha em 1919 viu-se compelida a assinar o Tratado de Versailles, em termos bastante desfavoráveis |
Com base no «Tratado de Versailles» criou-se também a Liga das Nações, com sede em Paris. Apresentava-se como órgão internacional para o estabelecimento da paz no mundo, desiderato que nunca logrou alcançar. Os EUA pretendiam que a sede da Liga fosse em Nova York, pelo que se recusaram a participar. Isso condenou a organização ao fracasso. Foi para obstar a essa recusa e a idêntico fracasso que, em 24 de Outubro de 1945, na sequência da II Guerra Mundial se fundou a ONU - Organização das Nações Unidas.
Acresce dizer que Portugal entrou oficialmente na Grande Guerra, como beligerante, apenas em 9 de Março de 1916, em face do aprisionamento de dezenas de navios alemães acostados em portos lusos. Esta decisão foi um golpe político do governo republicano para obrigar a Alemanha a declarar-nos guerra. Na verdade, Portugal detinha o estatuto de neutralidade, e assim se manteve até 1916. Todavia, desde o início da guerra em 1914 que as tropas alemãs vinham sistematicamente atacando as nossas colónias africanas. As forças militares estacionadas em Moçambique, defendiam-se tenazmente, sem, contudo, haver qualquer declaração oficial de beligerância emitida entre as partes. Os lideres dos três principais partidos republicanos, sob a égide do Dr. Afonso Costa, subscreverem um pacto de união republicana, para salvar a pátria de uma possível agressão estrangeira (como a que estava a suceder nas colónias) e, sobretudo, para salvar o próprio regime, obrigando o aliado britânico a aceitar a nossa participação no conflito, reconhecendo as outras nações aliadas na guerra, a existência da novel República Portuguesa.
Ao abrigo do ancestral «Tratado de Windsor», subscrito no séc. XIV por D. João I, que ainda hoje se mantém em vigor – razão pela qual é o mais antigo tratado militar do mundo – o governo republicano mandou organizar o CEP-Corpo Expedicionário Português, que rumou aos campos de batalha da Flandres, onde chegou a alcançar um efectivo de 200 mil homens. Na frente ocidental, espraiada pelos campos franceses e belgas, bateram-se os nossos soldados com bravura e coragem, apesar de mal abastecidos, deficientemente equipados e literalmente abandonados, a partir de 1917, pelo governo germanófilo de Sidónio Pais. Durante mais de um ano, o CEP não recebeu apoios logísticos, nem o indispensável revezamento das suas tropas, o que contribuiu para o descrédito das chefias e para a depressão moral das tropas entrincheiradas no front ocidental. Percebe-se agora o porquê do presidente Sidónio Pais ter sido assassinado no ano seguinte, e o porquê do fracasso das nossas tropas na tristemente célebre Batalha de La Lys, onde se distinguiu a figura mítica desse intrépido soldado que dava pelo nome de Aníbal Augusto Milhais, cujos numerosos feitos de bravura e heroísmo lhe valeram o epíteto de “soldado Milhões”.
Aníbal Milhais,o "soldado milhões", herói nacional, ostentando o colar da Torre e Espada |
A participação de Portugal na Grande Guerra teve o importante efeito de compelir as principais nações europeias, quase todas monárquicas, a reconheceram a existência do regime republicano em Portugal. Por outro lado, conseguiram-se manter as colónias africanas praticamente intactas, e a salvo da rapacidade britânica e germânica. Mas tudo isso teve um custo que não justificou os resultados efectivos dessa participação, que foram em todos os capítulos muito dolorosos e profundamente lamentáveis. Do ponto de vista económico-financeiro foi desastroso, pois aumentou exponencialmente a dívida pública, causando graves problemas sociais nos diversos sectores da vida laboral. Com as finanças públicas nitidamente insolventes, também a vida política, social e cultural se tornaria insustentável, sendo a dívida externa e a exaustão da fazenda uma das causas próximas da revolução militar do «28 de Maio de 1926». Do ponto de vista humano, a participação portuguesa na Grande Guerra teve consequências desastrosas, já que ascendeu a 40 mil mortos, causando uma tremenda sangria na vida social, na organização do trabalho, tanto nos meios rurais como na indústria urbana, e sobretudo no sentimento dos portugueses.
Basta lembrar a existência em França do cemitério militar de Richebourg l´Avoué, onde se encontram sepultados 1.831 soldados caídos em combate, dos quais 238 corpos se encontravam de tal maneira estropiados que não foi possível identifica-los, razão pela qual na sua lápide funerária se encontram registados como “português - desconhecido”.
Tumulação do soldado desconhecido, na Sala do Capítulo do Mosteiro da Batalha, em 10-04-1921 |
No final da guerra o balanço das perdas humanas foi desastroso: dez milhões de mortos, 20 milhões de feridos, estropiados e gaseados. A Alemanha exaurida, a França devastada pelos combates e bombardeamentos, os impérios russo, alemão, otomano e austro-húngaro colapsaram e fragmentaram-se em novos países. Apesar de todas as desgraças, há que ressaltar alguns factores que resultaram positivos. A emancipação da mulher foi o mais importante. O recrutamento militar fez escassear a mão de obra, surgindo em alternativa a mulher operária, nas fábricas, nos serviços, nos hospitais, e até na retaguarda da guerra. A igualdade e os direitos da mulher no trabalho e na vida económica da sociedade tornaram-se numa evidência que o tempo se encarregaria de demonstrar. O imprescindível papel da mulher na vida social e pública, viria a reafirmar-se vinte anos depois com a deflagração de novo conflito mundial.
No rescaldo da guerra, outras consequências relevantes não devem ser descuradas. Desde logo ao nível da Medicina, com novos medicamentos e importantes avanços na Química e na Farmacopeia. No trabalho, a divisão de funções, a linha de montagem, o Taylorismo, os movimentos sindicais e as ideologias políticas. Os movimentos artísticos na pintura e na música, com o jazz por exemplo. No teatro e sobretudo no cinema, com a cor e o som. Nos transportes, com as epopeias aéreas de Charles Lindbergh e até de Gago Coutinho. Enfim, surgiram mudanças nos hábitos, nos costumes e nas mentalidades. A grande surpresa são os loucos anos vinte, que todos conhecemos da literatura americana e do cinema, cujo expoente se pode fixar na obra O Grande Gatsby, de F. Scott Fitzgerald, que foi soldado do exército americano aquando da primeira invasão de 1917. Além do Jazz e da dança, cuja influência afroamericana era indesmentível, acresce ressaltar a música de George Gershwin para a Broadway, a revolução automóvel pela Fordização da indústria construtora, a motorização das máquinas agrícolas ou o aumento da velocidade dos automóveis, que deu origem aos autódromos e às loucas corridas, de que são exemplo as 500 milhas de Indianápolis. Acima de tudo isso estão as relações humanas, com o amor livre e o namoro espontâneo, a mostrar-se como expressão da liberdade conquistada no pós-guerra. De todos estes excessos resultaria a crise bolsista de 1929, a falência de bancos e empresas, o desemprego, a austeridade, e por fim o nazi-fascismo dos fatídicos anos que precederam a segunda guerra mundial.
Em suma… com a assinatura do Tratado de Versailles, em 1919, pode dizer-se que a democracia venceu em toda a linha. O mapa da Europa rejuvenesceu de vida política e de novos mercados económicos. Os EUA obtiveram o estatuto de primeira potência mundial, que conseguiu manter até hoje, mercê da sua presença militar nos principais conflitos mundiais. A Europa actual, sobretudo no que respeita ao seu mapa político, é muito semelhante ao que resultou do fim da primeira guerra mundial.
A primeira guerra mundial, alterou completamente a nossa percepção da vida social cultural e económica do planeta. Mas permanecemos hoje, como no passado, imbuídos do mesmo espírito Euro-centrista, confiantes na ocidentalização do primeiro mundo. Essa é uma visão deturpada da realidade. A vida é hoje global, mais dependente dos interesses económico do que das influências políticos. Os potentados económicos têm de procurar encontrar o justo equilíbrio e o caminho da paz. A próxima guerra mundial poderá fazer-nos regressar às cavernas e acabar com a civilização, tal qual hoje a conhecemos.
[Resumo da conferência que proferi, em 9 de novembro de 2018, na sessão de encerramento do Ciclo «100 anos depois - Saúde e Cultura» organizada pela Universidade do Algarve].
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CONFERÊNCIAS,
História Universal
quarta-feira, 18 de janeiro de 2023
As cédulas fiduciárias, e o dinheiro municipal
No início da I Guerra Mundial, decorrida entre 1914 e 1918, assistiu-se em toda a Europa a uma forte valorização dos metais, utilizados na indústria bélica. Quando, em 1916, Portugal entrou no conflito, notou-se uma grave escassez de moeda circulante, que se agravou até meados da década de vinte. As moedas de prata e bronze foram logo resgatadas pelo Estado, cujas finanças entraram em insolvência. As de cobre, ferro e cuproníquel, ainda em circulação, foram desviadas para a indústria e fabrico de armas, a ponto de deixarem de existir meios de troca.
Em reflexo da guerra desencadeou-se um surto inflacionário devastador, descaradamente visível nos géneros de primeira necessidade, e sobretudo no aumento do preço dos metais. Por isso, emitir moeda ficava não só muito caro, como era de todo inviável.
Face às circunstâncias, o governo recorreu a uma estratégia que havia sido aplicada em 1891, numa crise financeira muito semelhante – isto é, à emissão pela Casa da Moeda de pequenos bilhetes popularmente designados por “dinheiro de trocos”. Esses exemplares, impressos em papel comum ou em cartolina fina, uns muito simples, apenas com a indicação do local e do valor; outros mais elaborados, por vezes com requintes estéticos – divulgando os heróis locais ou as suas belezas turísticas, num requinte de indisfarçável nacionalismo – ficaram conhecidos até hoje como “cédulas fiduciárias”. Este fenómeno, da escassez de metais amoedáveis foi transversal a toda a Europa. E tal como no nosso país emitiram-se cédulas para facilitar as transacções de baixo valor no pequeno comércio, ficando conhecidas como “monnaies de necessite” em França, “emergency Money”, no Reino Unido, e “notgeld” nas nações do trato germânico.
Para obstar à escassez de moeda, o governo autorizou a Casa da Moeda, alguns bancos regionais, as Misericórdias, as Associações Comerciais, e sobretudo as autarquias (Câmaras e Juntas de Freguesia) a emitirem senhas ou cédulas ou papéis de trocos, abrindo-se uma espécie de cascata nacional que jorrou espécimes monetários no valor de 1 até 20 centavos. Este fluxo fiduciário iniciou-se em 1917 e prolongou-se até 1924-25.
O governo mandou a Casa da Moeda emitir cédulas de 2 e 10 centavos, autorizando a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa a imprimir cédulas de 5 centavos. Estava aberta a catadupa. No ano seguinte, autorizou 178 municípios a imprimirem cédulas, até ao valor máximo de 10 centavos, sendo apenas válidas no concelho emissor. Em todo o país só podiam circular as cédulas emitidas pela Casa do Moeda.
Em 1924, o Ministro das Finanças, Dr. Álvaro de Castro, proibiu a circulação nacional e regional das cédulas fiduciárias, optando por uma política de rigor orçamental, através de um forte aumento de impostos e da diminuição da despesa pública, com vista a travar a descida do escudo. A exploração mineira colonial e a arrecadação dos metais preciosos depositados nos museus e noutros organismos do Estado permitiram voltar à amoedação dos cunhos nacionais e à revalorização do escudo.
O que ficou dessa grave crise económica foi o testemunho material da escassez de moeda, através das cédulas fiduciárias que se imprimiram um pouco por todo o país, algumas delas de rara beleza estética, a imitarem as notas de banco, mas também a divulgarem os padrões culturais dos concelhos em que foram emitidas.
Aqui ficam, como ilustração, algumas cédulas emitidas nos concelhos algarvios, assim como uma da minha terra, Vila Nova de Famalicão, algumas do Hospital dos Arcos de Valdevez, outras da própria Casa da Moeda, e dois exemplares emitidos na Áustria. O coleccionismo destes espécimes monetários em papel, tem sido alvo de atenção dos mercados da especialidade, nomeadamente dos bancos portugueses, sendo disso exemplo a colecção do Dr. António Cupertino de Miranda, que constitui uma parte do seu valioso Museu do Papel Moeda.
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HISTÓRIA DA REPÚBLICA,
NÓTULAS DE HISTÓRIA DO ALGARVE
terça-feira, 17 de janeiro de 2023
A vila de Monchique nasceu em 1573 ou em 16 de Janeiro de 1773?
Gravura das Caldas de Monchique, pintada em 1812 pelo artista britânico George Landmann |
Foto dos princípios do século XX, colorida à mão. Vê-se a serra ainda muito escalavrada. |
Esta "Relação da Jornada de D. Sebastião» ao Algarve", realizada em 1573, foi primeiramente publicada na «Revista de Sciencias Militares», vol.2, de 1886, e quase um século depois, em 1984, editada em livro, com um valioso estudo introdutório do Prof. Sales Loureiro, de quem tive a honra de ser aluno e amigo pessoal.
Mas, tudo isto vinha a propósito de uma breve alusão à aldeia de Monchique, contida na «Relação» de João Cascão, a propósito da visita do Rei D. Sebastião ao Algarve, quando se encontrava hospedado em Vila Nova de Portimão. Diz o cronista a dado passo:
«Na 2ª feira 26 de janeiro [de 1573] partio El-Rei de Vila Nova [de Portimão] ás 4 horas depois da meia noite para Monchique, e são 5 légoas de caminho… Foi acompanhado sómente dos Fidalgos da guarda; no caminho vio os banhos em que muitos doentes achão remedio ás suas enfermidades. Da Villa vierão esperar huma bandeira de soldados, e alguma gente de cavalo. Ouvio missa na Igreja matriz. Depois de jantar sobio á serra a qual he em extremo alta, e em cima muito chãm e se vê della huma grande parte da terra e a Torre de Beja muy clara; andou El-Rei hum pedaço vendo-a e onde chamam Loja se deceo e esteve bebendo em huma fonte; partio para Villa Nova [de Portimão], onde chegou já de noite, e por todas as janelas avia luminárias que pareciam em extremo bem. Em cima dos muros havia barris de alcatrão acezos, e afortaleza, entrando El-Rei, fez sua salva de artilharia.»
Até aqui tudo bem. Trata-se de uma descrição da viagem, assaz curiosa, porque se percebe que D. Sebastião visitou as termas ou Caldas, ouviu missa na Matriz e subiu à Fóia, onde pôde apreciar a deslumbrante paisagem virada à costa algarvia, mas também o horizonte para nordeste, onde lobrigou a torre da cidade de Beja. A verdade é que o jovem monarca ficou tão encantado com a frescura do clima e as semelhanças ambientais de Monchique com a nobre vila de Sintra, que, segundo revela o cronista, não teve pejo em elevá-la à categoria de Vila, o que deixou enfurecida a vereação de Silves, então a mais antiga cidade do Algarve, que assim se via desapossada de avultados rendimentos e de uma importante fatia do seu território administrativo.
O episódio ficou extratado pela mão de João Cascão nos seguintes termos:
«Monchique he lugar muito fresco, tanto que dizem que pode competir com Cintra; era aldeia de Silves, porque El-Rei fez agora Villa a nomeio. A camara de Silves tomou muito a mala nomeação em Villa e vierão contra isso dar suas rasões a El-Rei, que os mandou receber pelo ouvidor da Corte.»
Foto de 1913, publicada na revista Ilustração Portuguesa relativa a uma visita de Jornalistas ingleses a Monchique. |
Não sabemos ao certo qual o desfecho final deste episódio, mas não é difícil de perceber que no regresso da jornada o Rei tenha arrefecido o deslumbramento dos prazeres da viagem, e se deixasse convencer pelo Ouvidor, que terá esclarecido o monarca sobre os prejuízos de Silves, e certamente sobre a falta de meios dos monchiquenses para sustentarem a Câmara, para a qual talvez lhe escasseassem os povoadores, os rendimentos e até os “homens-bons ou ricos-homens” para uma governação a preceito. O jovem rei D. Sebastião foi magnânimo em diversas ocasiões desta visita ao Algarve, dentre os quais é subido exemplo a elevação de Monchique à condição de Vila. Todavia, não foi capaz de cumprir e manter a palavra, nem o seu desígnio, certamente por falta de meios práticos que viabilizassem um acto de justiça, que viria a ser realizado dois séculos depois, a 16 de janeiro de 1773, por vontade do Marquês de Pombal, e beneplácito do rei D. José I.
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NÓTULAS DE HISTÓRIA DO ALGARVE
sábado, 14 de janeiro de 2023
António Augusto Santos, jornalista, poeta, dramaturgo e... sportinguista
Funcionário dos Caminhos-de-ferro e jornalista, nasceu na vila do Barreiro, a 2-4-1906, e faleceu em Faro, a 2-3-1987, com 81 anos de idade.
Estudou na sua terra-natal, não indo além da instrução primária, embora quem o conheceu, como foi o meu caso, sabe que era um homem bastante culto e muito inteligente, que escrevia primorosamente. Além dessas qualidades intelectuais, era também uma pessoa muito generosa, de bom coração, muito humilde e desprovida de quaisquer vaidades.
Como jornalista distinguiu-se ainda jovem ao fundar e dirigir o «Jornal do Barreiro», um órgão de largas e respeitáveis tradições, em cujas colunas colaboraram distintas figuras da intelectualidade nacional, nomeadamente Aquilino Ribeiro, Alves Redol, Fernando Namora, Arlindo Vicente, Manuel Cabanas, etc.
No seguimento do seu múnus profissional desempenhou também as funções de chefe de redacção de «O Ferroviário» órgão sindical daquele notável grupo laboral, com larga expansão e cobertura nacional.
Por razões de ordem profissional, veio residir para Faro na década de quarenta. E aqui se manteve até ao fim da vida, isto é, durante mais de quatro décadas. Nessa altura, viviam-se os difíceis anos da II Guerra Mundial, e o Augusto Santos começou logo a dar nas vistas, não pelas suas indisfarçáveis qualidades intelectuais, como também pela sua generosidade ao ajudar os seus camaradas mais desafortunados, alguns deles perseguidos por razões políticas, a sobreviverem perante a carestia de vida. As suas preocupações sociais fizeram atrair sobre si a sanha da desconfiança e a passar também um mau bocado.
Pouco depois de fixar residência, começou a colaborar em quase toda a imprensa algarvia, escrevendo também para os jornais diários e assumindo durante mais de trinta anos a incumbência de ser correspondente em Faro do «Jornal de Notícias» do Porto, de «A Bola», do «Norte Desportivo» e de outros órgãos desportivos. Aliás, o António Augusto Santos ficou conhecido no Algarve como um dos mais experientes e conceituados jornalistas desportivos da região, sendo inclusivamente o seu nome referenciado como uma autoridade nacional, sobretudo na exegese futebolística. Por isso é que o governo o agraciou, julgo que em 1986, com a «Medalha de Mérito Desportivo», exemplo esse que serviu de mote às Câmaras Municipais de Faro e do Barreiro.
Dirigiu e editou várias publicações comemorativas, nomeadamente o «Anuário Comercial e Industrial de Faro», que teve várias edições, assim como a «Agenda Comercial e Industrial de Faro» (1968), etc.
Para além de jornalista, foi também um inspirado poeta e um dramaturgo de grande qualidade artística, que passou ao lado de uma notável carreira nas pátrias letras, pois que possuía qualidades para singrar e tornar-se justamente famoso, mercê da grande qualidade evidenciada pela sua obra.
Dispersou a sua prestimosa colaboração por diversos órgãos da imprensa algarvia, nomeadamente por «O Algarve» de Faro, «Correio do Sul», «Folha do Domingo», «Correio Olhanense», «Povo Algarvio», «Comércio de Portimão», «O Sporting Olhanense», «O Sporting Farense», etc. No semanário farense «O Algarve» publicou, em Março de 1976, um “Pequeno Dicionário Humorístico do Futebol Português” que ainda se lê com proveito de boa disposição. Este órgão farense promoveu-lhe na década de oitenta uma homenagem pública, realizada no salão nobre da Assembleia Distrital de Faro, a qual foi presidida pelo seu amigo, conterrâneo e notável jornalista Manuel Figueira, então a desempenhar as funções de Director-Geral da Comunicação Social, cerimónia a que tive a honra de assistir. Nessa altura, António Augusto Santos foi considerado o decano dos jornalistas da imprensa regional algarvia.
Como escritor julgo que apenas deu à estampa uma pequena peça de teatro, na qual retrata a paixão futebolística sentida por um adepto sportinguista, face ao derby lisboeta disputado numa final da Taça de Portugal, intitulada «Benfica-Sporting – Farsa em um Acto», Faro, Tipografia União, 1958.
Acresce dizer que António Augusto Santos foi membro fundador da AIRA - Associação da Imprensa Regionalista Algarvia, a cujos corpos sociais julgo que chegou a pertencer, ao lado de Antero Nobre, Joaquim Magalhães, Herculano Valente, Ofir Chagas, João Leal, Reis d’Andrade, e outros.
Era casado com D. Maria José Santos e foi pai de quatro rapazes, todos cidadãos de primeira grandeza, alguns dos quais se distinguiram, tal como o pai, na imprensa e nas letras em geral. O seu filho mais novo, Dr. Luís Filipe Rosa Santos. notabilizou-se como professor e investigador da história local, além de ser também considerado com um artista plástico de enorme talento.
Para terminar gostaria de deixar aqui estampado um dos seus muitos e belos poemas, que nunca chegaram a ser compilados em livro, tal como aconteceu com as suas peças de teatro que receio venham a cair num irremediável esquecimento. Este poema tem a particularidade de ser inspirado e dedicado aos seus dois filhos mais novos, sendo por isso intitulado “Dois Irmãos”:
Do Mundo – pequenina esfera colorida –
Talvez porque vê nele um mundo de ventura,
Meu filho a veio pedir com voz enternecida
Não porque as suas mãos, pequenas como são,
Pretendam sufocar o «mundo» pequenino,
Mas porque tem do globo uma abstracta noção
E o vê simples brinquedo, afeito a um menino.
Dei-lho. E quando o irmão, sem ter com que brincar,
Surgindo o viu do «Mundo» um senhor poderoso,
Sentou-se junto dele adoçando o olhar
Nesse império-brinquedo, humilde e pesaroso.
Estranhando o pesar do seu melhor amigo,
O mais novinho, então, num terno olhar jucundo,
Disse: - Aqui tens, para brincar comigo!
E estendeu-lhe a mão com metade do «Mundo».
Ao seu gesto inocente achei tanta bondade,
Que pensei noutra esfera, a fim de o premiar;
Merecia até mais tal generosidade
Digno de bons irmãos. Mas, fiquei-me a pensar:
Forçoso é desistir. Se há muito lhes mostrei
Que o «Mundo» se reparte, assalta-me um receio.
Que dor, que mágoa atroz sentiria nem sei,
Se um deles, amanhã quisesse mundo e meio...
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HISTÓRIA da IMPRENSA ALGARVIA
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