sexta-feira, 26 de abril de 2013

No I Centenário de Emiliano da Costa - converter em casa-museu a residência do poeta

Em 17 de Abril de 1984 publiquei no vespertino «Dário de Notícias» um artigo sobre o poeta Emiliano da Costa cujo primeiro centenário do seu nascimento se comemorava nesse ano, sem a pompa nem a circunstância que a memória daquele notável vate justamente merecia. Para lhe enaltecer o talento e lembrar a importância da sua obra literária, aproveitei o ensejo para visitar a antiga residência do poeta, em Estoi, e sugerir a sua conversão em Casa-Museu, à semelhança do que já ocorrera com Ferreira de Castro e José Régio. A ideia, embora não fosse difícil de concretizar, não teve, porém, a repercussão expectável junto das autoridades locais e regionais. Passados praticamente trinta anos a ideia mantém-se atual, mas infelizmente por concretizar. Os herdeiros da residência, já não serão provavelmente os mesmos que conheci. E temo que o valioso espólio, que então pude observar, já não se conserve na sua integridade.
Para que o meu alvitre, e a minha sugestão de fomento cultural, não permaneça no olvido, decidi recuperar esse artigo e deixá-lo aqui transcrito na sua versão original.


domingo, 14 de abril de 2013

Biblioteca Municipal de Faro - Uma riqueza à espera do futuro

 [Fiz a minha estreia jornalística, como redator regional, no vespertino lisboeta «Diário de Notícias, no dia 20 de Junho de 1981, com um artigo sobre a Biblioteca Municipal de Faro, cujas instalações, nessa altura, acabavam de ser melhoradas mercê da sua transferência do edifício da Câmara Municipal para o quinhentista Convento de Nª Sª da Assunção, vulgo colégio das freiras, e atual Museu Arqueológico e Lapidar do Infante D. Henrique. A biblioteca era pouco frequentada, mas o seu acervo bibliográfico era significativo e valioso. O objetivo deste artigo prendia-se com a urgência de melhorar as circunstâncias de trabalho, as instalações e a divulgação das reais potencialidades daquela instituição para o apoio à investigação e ao ensino universitário, que havia sido oficialmente criado em 1979, mercê da fundação da Universidade do Algarve. Para que não ficasse definitivamente esquecido nas colunas desse grande vespertino (entao como hoje, o mais antigo e mais importante órgão de imprensa do nosso país), decidi recuperar o artigo e transcrevê-lo aqui, na sua integridade original, atualizando-lhe apenas a ortografia. Como era relativamente extenso, a direção do «DN» decidiu publicá-lo em duas partes: a primeira a 20 e a segunda a 30 de Junho de 1981.]

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

A Alma da poesia no Corpo do amor

José Carlos Vilhena Mesquita

A poesia é a ciência mais antiga do Homem. Dito assim, de chofre, parece uma blasfémia. Afirmo-o, porém, na plena consciência de não estar a incorrer na estulta insensatez de confundir a objectividade da ciência com o idealismo egocêntrico e fantasista da verve poética. A ciência é fria e impessoal, enquanto a poesia é calorosamente intimista. Parece que estamos a falar dos antípodas da razão, ou dos oponentes da existência humana. Mas, na verdade, a poesia é a expressão mais artística e mais sublime da vida, tendo servido desde tempos imemoriais para aplacar os deuses, homenagear os heróis, seduzir os vivos e invocar os mortos. Tudo na vida se pode envolver no halo sagrado da poesia.
Os primeiros conhecimentos foram transmitidos de geração em geração pela arte, pela música e pelo legendário oral, através do qual se fortaleciam os laços de pertença e de integração social. As tribos e os clãs mais ancestrais, identificavam-se não só pela sua peculiar iconografia, como sobretudo pela reverência dos seus heróis, cujo preito se fazia através de cânticos, loas, odes e outras expressões poéticas. Significa isto, que nos primórdios da civilização o saber/ciência era fruto do tempo e da experiência, ou seja, do empirismo vivencial, cuja transmissão se operava através de sentenciosos adágios ou provérbios, pejados de sonoridades rimáticas que facilitavam a sua memorização.
Digamos que a poesia nas sociedades menos evoluídas se tornou numa espécie de correia de transmissão da ciência, exemplo que ainda há pouco anos se verificava nas aldeias mais recônditas do nordeste beirão e transmontano. Se repararmos na nossa literatura oral, constatamos que o misticismo e a crendice popular estão impregnadas de poesia, evidenciada nas orações e benzeduras, nas adivinhas, nos maus-olhados, nas pragas e maldições, nos aforismos e adágios, nos autos e entremezes teatrais, nos relatos sobre o passado histórico e lendário dos antepassados... Enfim, nesse imenso património bio-socio-antropológico, a poesia funciona como uma espécie de oráculo da cultura popular.
No seio da cultura portuguesa, atribui-se ao Infante D. Pedro, a quem chamaram o príncipe das sete-partidas, filho de D. João I e membro da “Ínclita Geração”, a honra de ter introduzido na língua portuguesa o vocábulo POESIA, cujo género literário dizia ele ser “Coisa mais do sabor do que do saber”. Esta afirmação, aparentemente, vem contradizer a relação primordial entre a ciência e poesia. Mas, na verdade, o que acontece é que o tempo mudou, isto é, alteraram-se as mentalidades, transformando-se a organização social e económica do mundo. Modificaram-se as noções de ciência e de cultura, o conhecimento procurou independentizar-se da filosofia e assistiu-se ao nascimento das diversas ciências. E a Poesia, que durante muito tempo havia servido de muleta à ciência, tornou-se a partir de então numa Arte intelectual – é certo que numa expressão elevada do pensamento e num pitonísico oráculo do idealismo filosófico, mas definitivamente numa arte ou simplesmente numa forma de criação artística.
Estava-se em plena Renascença, fervilhavam novas ideias nos cenáculos do Humanismo, e a sombra do velho mundo passava a medir-se com a vara do estro humano. Era o tempo do homo mensura. A poesia tomava novos rumos em diferentes cambiantes. Tornara-se mais imaginativa e artística, formulando novos modelos para a arquitectura das palavras. O sentido desalinhou-se do conteúdo, isto é o significado e o significante estabeleceram um imbricado relacionamento, formando enigmáticos dédalos de locuções, aos quais a riqueza fonética das palavras emprestou uma inovadora sonoridades musical. A partir de então a poesia tornou-se na arte da palavra por excelência. Ora, acontece que as línguas latinas possuíam, na radícula do classicismo, a especial singularidade de darem à entoação das palavras uma musicalidade natural. Talvez por isso é que Rodrigues Lobo no seu livro a Corte na Aldeia, dissesse que "a língua portuguesa é branda para deleitar, grave para engrandecer e doce para pronunciar" .
Por sua vez, Sá de Miranda (o célebre introdutor do soneto em Portugal) desejando ilustrar o espiritualismo e o desprezo dos poetas pelo materialismo, dizia que "os poetas tudo punham em flores e dos frutos nada havia que esperar". Esta asserção marcaria para sempre a concepção geral do valor da poesia, e, por consequência, a desvalorização social do poeta. Vulgarizou-se a errónea imagem do Poeta sonhador, lunático, excêntrico, extravagante e caprichoso, resultante do seu aparente desapego à realidade, do seu psiquismo frenético e fantasista, do seu epicurismo sensualista e, sobretudo, do seu hedonismo existencial.
Certamente por causa dessa falsa imagem do Poeta, é que, mais tarde, quando o materialismo burguês se apoderou do nosso país – um pouco à semelhança do que estamos a viver hoje –  Camilo Castelo Branco, que chegou a ter pretensões poéticas, afirmava enfurecido: «Gela-se-me o sangue, quando a ignorância petulante faz um trejeito de menosprezo ao talento e diz: poeta!».
Ora a Poesia é, em primeiro lugar, um acto de comunicação com o Eu e com o Outro. E actualmente a Poesia também é um lugar de resistência à globalização, cada vez mais redutora e homogeneizante, fulcralizada num modelo imperialista de cultura inspiradamente anglo-americano, no qual só o mediático é universal.
No fundo, a Poesia é simplesmente a arte de fazer versos, transmitindo neles o sentimento, o temperamento e o carácter do poeta, numa simbiose da intimidade com a estética, sem nunca perder de vista os excelsos valores da Ética. Mas, por outro lado, a Poesia é a expressão natural da paixão como suprema manifestação do amor, num entrelaçar de imagens e de metáforas que transluzem o sofrimento e a dor dos amantes. Porém, como dizia Fernando Pessoa, "o poeta é um fingidor, finge tão completamente, que chega a fingir que é dor, a dor que deveras sente". Por isso é que a poesia obedece a uma fórmula de composição estética e musical.
Classicamente a Poesia obedece a uma fórmula de composição estética e musical. O seu objecto é a beleza de expressão associada à ideia, usando a palavra com parcimónia, mas procurando elevar os conceitos até ao nível da plurivalência entre o significado e o significante. A poesia deve, pois, expressar uma certa harmonia entre a inspiração lírica e a mensagem literária, dando-lhe um carácter comovente, sem extinguir certezas absolutas.
A Poesia é a inspiração natural e transcendente, mas também é um labor sequencial com a palavra num aprimoramento de ideias e de pensamentos, concebidos nos céus etéreos da lógica, que ultrapassam a materialidade e a impermanência da vida. Por outro lado a poesia é a própria Vida, pejada de memórias recorrentes e de magnetismos telúricos, impregnando-se, por vezes, de obscuros e insondáveis mistérios.
Acima de tudo, a Poesia é dialógica. Com a palavra inventamos mundos usando conceitos profundos e belas metáforas, mas é com palavras simples e familiares que se faz a melhor poesia. Talvez por isso é que o poeta José Craveirinha concebia a criação lírica como uma "fraternidade das palavras", afirmando que "as palavras só precisam de quem as toque ao mesmo ritmo para serem todas irmãs".
Mas a memória das palavras não depende da memória, mas antes das palavras. Existe um Sul mítico no esplendor do Sol, nas areias movediças da memória e na espuma das palavras, como a presença viva dos nossos ascendentes que pairam sobre a nossa memória. Os lugares de recorrência acontecem frequentemente na poesia, quando lembramos as raízes e o tempo que passa, como memória da água.
Existe um tempo de maturação poética, durante o qual o poema precisa de adormecer na sua forma crisálida até despertar como eflúvio de vida e de beleza. Em jeito de crítica, construtiva, diria que existem dois tipos de poetas: os de inspiração vulcânica, a que chamo repentistas, e os versificadores aplicados, a que chamo poetas da inteligência. Os primeiros são os apóstolos do povo, cantam aquilo que vêem com a simplicidade do seu limitado horizonte intelectual. Os segundos versejam com eloquência, constroem imagens e metáforas de fino recorte estilístico, evidenciando uma forte presença intelectual, entretecida na sensibilidade estética e na elevação do pensamento filosófico. Há certos poetas que escrevem de chofre, na primeira penada, sem tão pouco verificarem se nos seus poemas existe sentido, Beleza ou Graça.
O poeta é, em suma, um mago cinzelador da palavra transformada em verso, um alquimista da Beleza. Por isso é que Fernando Pessoa definiu o poeta nesta simples e genial síntese: «Deve haver no mais pequeno poema, qualquer coisa por onde se note que existiu Homero».
Pegando na afirmação de Fernando Pessoa, sente-se que pelo Corpo e Alma deste livro, passou o espírito homérico da palavra peregrina, do amor platónico e da paixão física de Ulisses. Na profundidade estética da eloquência e na arrumação estésica do seu próprio sentido lírico, percebe-se que Saúl Neves de Jesus foi tocado pelo halo sagrado das musas, deixando-se enlevar no inebriante cântico das sereias.
Na sequência do meu raciocínio inicial, direi que esta obra não é de ciência, porque a tão elevado patamar já não se ergue a poesia. Porém, ela nasceu do amor, da paixão, do sentimentalismo e do mais puro espiritualismo de um cientista, que considero, sem favor, como um incansável, denodado e proficiente investigador, cuja obra académica tem depositado sobre o venerável e frio altar da ciência, com o aplauso inter pares e os mais rasgados elogios da crítica especializada. Este livro vem corroborar a velha frase de António Ferreira, o celebrizado autor da Castro, quando afirmou que “as musas nunca fizeram mal aos doutores”. E de facto assim se comprova pela leitura dos poemas que compõem o livro, De Corpo e Alma, embora também nele se perceba que não foram as musas que o inspiraram, mas certamente uma única e maravilhosa musa, que ajudou o poeta a descobrir a essência do amor.
Toda a obra está impregnada pela ascese dos sentidos, transmitida, de forma muito velada, através do calor sensorial das palavras, suspeitosamente evidenciada na apreensão sensual dos corpos, na percepção táctil das carícias dos amantes ou nos odores da carne libertados pelo frenesim do amor. No poema «Os cinco sentidos da paixão» tudo fica mais claramente definido. O amor vive-se e sente-se na plenitude dos sentidos. É dessa osmose sensitiva que o amor desperta em paixão. “O verdadeiro amor não pode ser definido, apenas sentido...”
Os poemas de Saúl Neves de Jesus são verdadeiras odes ao amor, cânticos oníricos carregados de paixão, num inebriante sensacionismo, que a ninguém pode deixar indiferente. O amor assume-se nos seus versos como um momento de magia, e o êxtase do amor pressente-se na simplicidade das palavras: “Um momento só nosso.../um momento eterno de magia”, “Vale a pena viver.../pela magia.../pelo teu olhar” Sente-se que o poeta vive “Um sonho acordado, / um espaço sem tempo, / num envolvimento infinito...” Por vezes sentimo-nos a seu lado, desejosos de “Acreditar no amor para todo o sempre / num destino traçado por Deus / como uma linha sem curvas...”.
Não restam dúvidas de que a leitura destes apaixonados poemas atingem o mais insensível leitor no profundo âmago dos sentidos, deixando-lhe na alma a contagiante nostalgia do amor, ateando-lhe a lembrança de amores inconseguidos ou de paixões inconsequentes. A magia poética ilumina a memória num contagiante fascínio pela dialéctica psicossomática do Eu em simbiose com o Nós, perpassando nessa relação intimista um certo dualismo ascético, por vezes místico, muito peculiar nos analistas da mente que vêem no amor o exclusivo refrigério da vida. “Quero continuar a sonhar / não me acordes / e sonha também...”
O livro aí está, pronto a ser partilhado, sobretudo por aqueles que ainda se sentem vivos para sonhar com o amor e experimentarem o calor de uma verdadeira paixão. O mistério da vida consubstancia-se precisamente na descoberta da essência do amor.

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Natal algarvio perdeu tradições


Dificilmente se encontram hoje no Algarve os resquícios da antiga festa natalícia genuinamente regional. Até mesmo nos lugares mais recônditos da serra algarvia se esbateram as tradições de antanho, apesar de em toda a região não ser estranha a alegria que a verdadeira festa do lar traduz no espírito da família. O que hoje se celebra, em todo o país, é um Natal estereotipado, um decalque euro-americano da festa da família, que oscila entre o presépio católico e o pinheirinho protestante, entre o bacalhau dos pobres e o peru dos ricos.

Imagem esteriotipada da Ceia de Natal em casa abastada
Em boa verdade, Natal minhoto, Natal transmontano, Natal beirão ou Natal algarvio, todos têm um denominador comum: a celebração de uma festa religiosa com características muito íntimas e peculiares, durante a qual se reúne a família numa verdadeira apoteose dos seus naturais continuadores – as crianças. O Natal é, por excelência, a Festa da Família, representada na criança, tida como natural prolongamento da estirpe e da linhagem, uma espécie de personificação da Esperança e do Futuro.
Pinheiro de Natal (Forum Algarve)
Os presentes, que no início da nossa Era serviram para homenagear o Deus-Menino, são hoje metaforicamente os mesmos (salvo as devidas distâncias e óbvias proporções do avanço civilizacional/tecnológico), pois que em si traduzem a felicidade do lar, a paz e a amizade entre os homens. Os presentes simbolizam, em suma, um gesto de homenagem àqueles que mais amamos. Por isso, Natal sem consoada, presépio e prendas, não é Natal. E estas são, sem sombra para dúvidas, as características mais gerais da festa natalícia, que progressivamente se tornou pertença do património universal de todas as raças, culturas e civilizações, até mesmo das que coexistem alheias ao cristianismo.
Verifica-se, porém, que as ascendências culturais, resultantes duma certa heterogeneidade geomorfológica de insondável ancestralidade, influíram as celebrações religiosas com manifestações populares, que, de algum modo, as diferenciavam, criando-lhes uma individualidade algo estranha e curiosa. Com o seu estudo se preocuparam, há décadas atrás, reputados etnólogos e antropólogos, que publicaram importantes obras, que são hoje referências incontornáveis. Não previam, todavia, que se pudesse operar com o tempo um evolutivo esvaziamento das tradições, para o qual parece estar a contribuir um hodierno progresso tecnológico, emanado de uma sociedade consumista, e de um mercantilismo alienante, que tende a estandardizar as próprias raízes culturais dos povos cristãos. O conservadorismo etnográfico, a reserva do tradicional, assume-se hoje aos olhos cosmopolitas como sintoma de atraso civilizacional. A mundialização do pinheiro escandinavo e do Pai Natal normando superaram, por observância da normalização comercial, os padrões culturais e as manifestações populares do Natal latino, esse sim, genuinamente cristão e profundamente visigótico. De tal forma assim é que o Natal secularizou-se para dar lugar a uma festa social, altamente vulgarizada, profundamente dependente duma indústria de mercado, que a força persuasora da publicidade e dos meios audiovisuais de comunicação tem vindo a banalizar.
Mesmo assim, apesar de todas as atrocidades etnográficas a que impavidamente temos vindo a assistir, o Natal é, e será sempre, a festa do lar e da família, a apoteose da criança, e um hino de paz que apela à fraternidade humana. 

Lareira tradicional da serra algarvia
À procura do Natal algarvio

Tal como antes afirmamos, não existe hoje propriamente um Natal algarvio, contudo tempos houve em que as manifestações natalícias se transformavam em verdadeiras festas da comunidade, variando de região para região, às vezes mesmo de concelho para concelho. Nos “montes”, nos lugares da serra e nas pequenas freguesias rurais, era evidente o sentimento de solidariedade e de confraternização entre os seus membros, ao qual o espírito religioso emprestava uma forte consistência. Era, curiosamente, uma festa deambulatória, se assim se lhe pode chamar, usando o lar e a igreja como balizas duma intercomunicabilidade fraternal em que as velhas desavenças e incompatibilidades se desfaziam num amplexo que o respetivo pároco se esforçava por estreitar. Nas terras do interior serrenho, emolduradas num luminoso cenário de azul-cobalto, faltava-lhes a neve ou o frio enregelante capaz de reter as suas gentes no aconchego da cálida lareira.
Era por isso que as famílias se visitavam, os mais jovens percorriam as ruas a visitar os lares mais queridos e também os mais abastados, comendo, aqui e ali, deliciosos pastéis de mel e provando espirituosos vinhos. A bondosa inocência do serrenho algarvio impregnava o Natal de um calor humano verdadeiramente inigualável.
Na esperança de encontrarmos a chama ardente desse passado, e das genuínas manifestações culturais natalícias, deslocámo-nos até ao vasto e recôndito concelho de São Brás de Alportel, que se espraia, algo perdido e quase esquecido, pela serra algarvia, cujos lugarejos percorremos ao sabor e à aventura de seculares caminhos. Conversámos com vários anciãos de provecta idade, em diferentes “montes” e em esconsos sítios, mas também falámos com pessoas instruídas e até com alguns jovens, que nesta quadra retornam às suas origens familiares para passarem as suas férias natalícias. No cômputo desse ligeiro inquérito, verificamos que as tradições antigas já se perderam, e que na sua maioria são já irrecuperáveis; que a juventude pouco se interessa com o passado e que despreza as tradições etnográficas; que a televisão, pela sua massificação telenovelesca, faz reter as pessoas em casa e retira o convívio social, perdendo-se também o diálogo familiar em torno da lareira, durante o qual se transmitiam aos jovens as estórias do romanceiro popular; que a carestia de vida exterminou quase por completo as visitas aos lares para estreitar relações, trocar conhecimentos agrícolas e acertar preços para a venda dos seus produtos… Mais consensual entre as diferentes gerações é a ideia de o Natal ser a época em que se recebem presentes, sendo, enfim, a consoada uma noite especialmente feliz, mas muito menos alegre do que a noite da Passagem de Ano.
Todavia, algo permanece ainda desse passado, para uns tão longínquo, para outros tão saudosamente presente, sobretudo na memória dos mais idosos. Mantém-se nos moldes de antanho a Ceia de Natal, assim como a gastronomia tradicional, a reunião da família, o presépio e os grupos de cantadores populares, a que chamam «charolas» e «charoleiros», que animam as noites frias das janeiras e das reisadas.

Madeiro de Natal ardendo no átrio da igreja
A tradição do “madeiro” de Natal
 
O dia de Natal continua a ser, de forma insofismável, o dia da Família, cujos diversos membros se reúnem na casa dos pais, na do filho mais velho ou na do irmão mais “remediado”. Curiosamente, há certos sítios da serra onde ainda ouvimos falar dos Morgados, termo que serve para designar os indivíduos mais ricos, em cujos lares se fazem lautas ceias de vários pratos, imensa doçaria e animada festa, para a qual costumam também convidar o pároco.
Durante a noite da consoada a animação nos lares serrenhos faz-se de diversas formas, conforme os hábitos e instrução dos membros da família; uns jogam às cartas, outros contam histórias antigas, revivem a memória dos antepassados, cantam velhas modinhas, até chegar o momento crucial da distribuição prendas. Nessa altura começa-se pelos mais velhos, dão-se beijos, abraços e sonoras risadas, os avós e os pais tornam-se o centro das atenções. Seguem-se depois os filhos e os netos, que em certos lares perfazem numeroso grupo.
madeiro de Natal
Costuma também ver-se nas aldeias da serra algarvia muitas viaturas de emigrantes, que apressadamente regressam aos seus lares de origem, para confraternizarem e reunirem-se com a família. A necessidade de afirmação do seu sucesso económico leva-os, por vezes, a realizarem ruidosas festas a que não faltam os acostumados foguetes.
Nos lares mais tradicionais, com antigas lareiras, queimam-se grossos “madeiros” que se colocam “atrás do fogo”. Esclareça-se que o “madeiro” é um grosso barrote de azinho, e que “atrás do fogo” significa colocar esse toro de lenha atrás da grelha do fogo vivo, encostado ao espelho da lareira, fazendo-o assim arder muito lentamente e apenas com o calor irradiado pelo lume. Deste modo transforma-se num enorme braseiro de fogo lento, que se mantém incandescente durante o dia, mantendo a casa quente. À noite reacende-se a lareira, mas sempre evitando que o “madeiro” entre em contacto com o fogo. Reza a tradição local que os rapazes solteiros – para no ano que se avizinha serem bafejados pela sorte – têm que durante a noite visitar nove “madeiros”, comendo filhós e bebendo vinho novo. Mas hoje já poucas casas se podem dar ao luxo de receber tanta gente e de ter uma lareira permanentemente acesa durante todos esses dias. Por outro lado, existem hoje modernos caloríferos para combater o frio, e poucas são as novas habitações que possuem fogão de sala.
De qualquer modo, dizem os mais velhos que, quando o “madeiro” não chega a consumir-se inteiramente até ao Dia de Reis, deve-se partir o que resta em pequenos pedaços que nos dias de tempestade se voltam a acender para atrair a protecção divina, evitando-se assim que algum raio fulmine o lar. Além disso, os antigos também diziam que o Natal era a festa da lareira ou do fogo sagrado, pelo que quanto maior fosse o “madeiro” e quanto mais tempo durasse a sua lenta incineração, maior e mais saudável seria a seara, ou seja, mais profícua e frutuosa poderia vir a ser a próxima safra agrícola. Curiosa é, porém, a vetusta crença dos serrenhos algarvios de que dá mau agoiro não comer bolotas nem castanhas nas vésperas de Natal. 
Trono do Menino Jesus, tradicional presépio algarvi
A entronização do Menino Jesus
 
O presépio é uma tradição inalterável – ultimamente misturado com o pinheirinho pagão, introduzido nos lares serrenhos pelas novas gerações. Toda a gente monta o seu presépio, com mais ou menos figuras e adereços naturais, conforme as possibilidades de cada lar. Nas novas habitações e bairros sociais vê-se uma crescente subalternização do presépio, por figurar debaixo do incaracterístico e pouco católico “pinheirinho”, às vezes feito em plástico, enfeitado com luminosos e musicais conjuntos elétricos.
Nos lares mais antigos, porém, “entroniza-se o Menino” numa espécie de altar, em forma de peanha com três a cinco andares, que as moças solteiras constroem sobre uma mesa (ou no próprio chão da sala), sobrepondo várias gavetas invertidas e de tamanhos sucessivamente menores, cobertas de níveas toalhas de linho, enfeitadas com pequenas luminárias de azeite (hoje substituídas por lamparinas de cera), frutos secos e frescos de diferentes cores e feitios, bonecos alegóricos à quadra natalícia e as tradicionais “searas”. Convém esclarecer que estas “searas”, com um significado simbólico de ancestral origem, obtêm-se colocando em pequenos recipientes uma porção de cereais, geralmente trigo, cevada, lentilhas, grãos ou centeio, mergulhados em água, que passados alguns dias germinam e crescem com colorações de um verde vivo que vai amarelando suavemente, semelhante aos das verdadeiras cearas de trigo. No último degrau desta curiosíssima pirâmide impõe-se a figura do Menino Jesus, emoldurado pela luz radiante das lamparinas e de todo aquele conjunto de frutos e searas, numa mescla entronização do Divino com o Natural. É em volta do trono do Menino Jesus que os mais jovens entoam alguns cânticos bastante peculiares:

Sagrada Família, arte popular
O meu menino Jesus
Está lá alto na tribuna;
Está pedindo à sua mãe
Que nos dê muita fortuna.

 Eu vim ver este presépio,
Qual será o meu destino,
Por ser noite de ano bom,
Venho cantar ao Menino.

 Hei-de dar ao Menino
Quatro, cinco, nove, seis,
E uma camisinha fina
P’ra vestir Dia de Reis. 

Hei-de dar ao Menino
Um galão pra cintura;
Que ele também me há-de dar
Um lugar na sepultura.

A Ceia de Natal

tradicional polvo de natal à algarvia
Junto ao presépio costuma montar-se a mesa para a ceia de Natal, a que também chamam na cidade a noite da Consoada, que ocorre na transição de 24 para 25 de Dezembro. Janta-se tarde, porque o dia ocupou-se com a decoração da mesa e a preparação das iguarias natalícias, especialmente os doces, que são o deleite das crianças. É a chamada noite feliz, a apoteose da família, a glorificação do Menino Jesus.
Na mesa de Natal dispõem-se pratinhos de enchidos cortados às rodelas, de fatias de presunto e de carnes frias; mais atrás ficam as canastrinhas de pinhões, de amêndoas, de figos torrados, de avelãs, de nozes e de estrelas de figo; mais perto dos limites da mesa desfilam então os bolos de mel, as filhós, os sonhos ou brinhóis, as fatias douradas, as empanadilhas de batata-doce, os queijinhos de figo e os de amêndoa, os dons-rodrigos, e, ao centro, os vinhos espirituosos e a saborosa medronheira algarvia. Os vinhos da adega da casa, ou comprados ao lavrador a garrafão, serão depois servidos em jarro de vidro incolor para acompanhar a ceia.
Ao contrário do bacalhau nortenho, do peru da cidade, do polvo do litoral ou das ameijoas com carne de porco do interior, aqui na serra algarvia come-se um anafado galo, escolhido alguns meses atrás para ser “tratado”, leia-se engordado. Desde logo fica marcado como o “Galo do Natal”, merecendo por isso cuidados especiais. Todavia, nas casas mais ricas e opulentas, cujas famílias são mais numerosas, costuma-se matar um porco, cuja carne é cuidadosamente repartida, salgada ou defumada, para que dure até à Quaresma.
Durante a noite, ou depois da consoada, alguns grupos de rapazes reúnem-se no adro da igreja para percorrerem a aldeia a cantar de casa em casa, até à hora da Missa do Galo. Entretanto, os chefes das famílias mais abastadas da freguesia dirigem-se para a Igreja onde apresentam os votos de Natal ao pároco, oferecendo donativos em dinheiro ou em géneros para a caridade e valimento dos pobres. À meia-noite celebra-se a Missa do Galo, cujo templo foi previamente decorado pelas senhoras mais piedosas e mais conceituadas da aldeia, com flores e outros adornos naturais, que conferem odoríferas colorações em torno do presépio popular, sobre o qual, aliás, se concentram todas as atenções. No fim da Missa, o pároco dá o Menino- Jesus a beijar aos fiéis, regressando depois todos a casa, com os mais novos a cantarolar algumas quadras alusivas à época. Por vezes, os moços solteiros reúnem-se no largo da aldeia em volta de uma crepitosa fogueira, com um enorme madeiro de azinho em brasa, irradiante de calor, em volta do qual cantam e dançam improvisados corridinhos. É claro que o calor da fogueira não faz dispensar o ardor da medronheira nem a energia das azevias de batata-doce, que os casais mais velhos trazem para oferecer aos jovens, de todas as idades.
No dia seguinte, come-se o que sobrou da noite da consoada, voltando-se a reunir a família, porém a alegria é bastante menor. Nas localidades da faixa litoral algarvia, especialmente nos bairros de pescadores, come-se pelo Natal o célebre “litão” ou peixe de cor, que é muito concretamente um cação ou uma moreia previamente corado, seco, à soleira da porta. Este costume ainda hoje se mantém em muitos lares e restaurantes de Olhão e de Portimão.
Na Passagem de Ano a festa é semelhante à do Natal, embora muito mais alegre, marcada por frequentes libações e bailaricos, que os mais jovens organizam nas sociedades recreativas ou nos clubes populares. As janeiras ou charolas são a manifestação mais castiça desta época, e também a mais característica do povo algarvio. No Dia de Reis era costume fazer-se o bolo-rei, cuja elaboração difere muito daquele a que já nos habituamos a consumir durante toda a quadra natalícia. As tradicionais janeiras ou reisadas cantavam-se pela última vez, encerrando-se deste modo o mais belo período festivo do ano.
Presentemente, nas cidades do litoral algarvio já não existem quaisquer manifestações populares que identifiquem aquilo a que poderíamos chamar um «Natal diferente». As tradições esbateram-se de forma irrecuperável ou perderam o sentido peculiar do Natal.
Hoje, o Natal é de cada um, nunca de todos e muito menos do Algarve.
 

domingo, 16 de dezembro de 2012

A economia agrária do Algarve, na transição do Antigo Regime para o Liberalismo (1790-1836)

A situação económica da agricultura algarvia foi sempre deficitária, mercê dos baixos índices de produtividade e de rendimento, suscitados pela desigual distribuição social da propriedade, pelo baixo investimento financeiro e pelo atraso científico-tecnológico, que – desde o período de reestruturação político-económica levado a cabo nos finais do séc. XVIII pelo consulado pombalino – dependia da reformulação de novas estratégias para a potencialização dos recursos endógenos. Além disso, os factores naturais de dinamismo energético, como a amenidade climática, os recursos hídricos e a fertilidade dos solos, só foram aproveitados na vigência do Liberalismo, e com especial acuidade no declinar de Oitocentos. Acrescente-se, por fim, que o sector dependia de factores extrínsecos, como a estrutura social da terra, a educação agrícola, o investimento integrado e as leis de mercado, entre outros elementos de fomento ou de desagregação do sector. Por outro lado, vemos que essa dualidade se distribuía numa geo-economia do espaço entre a beira-mar e as terras altas da serra algarvia.

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

A IMPRENSA REPUBLICANA NO ALGARVE

Aquilo que verdadeiramente distingue a Imprensa, como órgão de comunicação social, é a sua capacidade de interferência pública e de consciencialização das massas. Em certos momentos da História da Humanidade, essas capacidades transformaram-se em elementos catalizadores, isto é, em princípios revolucionários conducentes à irrupção de uma nova ordem social. A implantação da República em Portugal, o regime republicano e a democracia plena, muito devem à força e perseverança da imprensa, nomeadamente dos órgãos regionais que propagandearam os novos ideais. É desses jornais e dessa luta pela conquista da liberdade que vamos tratar neste artigo.

domingo, 10 de julho de 2011

Lembrando o poeta Santos Stockler

Artigo sobre a vida e obra deste notável poeta algarvio, falecido em 1989, e infelizmente já quase esquecido pela maioria dos seus comprovincianos. Personalidade forte, espírito irreverente e combativo, Santos Stockler, foi ao longo da vida um acérrimo defensor da Liberdade e da Democracia, contra a opressão do totalitarismo e a denegação dos lídimos direitos individuais e colectivos. Sempre pugnou pela defesa das  liberdades e garantias dos seus concidadãos, fazendo-o através da sua poesia, dos seus livros e dos artigos que publicou em diferentes jornais da imprensa regional e nacional. A cruzada que empreendeu pela conquista da Liberdade e instituição da Democracia fê-lo sofrer inúmeras agruras e sacrifícios. Por várias vezes seria detido pela PIDE, sofrendo na pele a desumanidade da tortura e da privação da liberdade.
Foi cinéfilo e crítico da 7.ª Arte, tendo âmbito dirigido e editado alguns órgãos de imprensa. Após o «25 de Abril» dispendeu as suas últimas poupança na edição do jornal «Terra Algarvia», nele estafando também as suas últimas energias.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

O Natal algarvio e as charolas de Moncarapacho

José Carlos Vilhena Mesquita

A temática natalícia reveste-se, na sociedade ocidental, de inúmeros panejamentos, desde a música, passando pela pintura até à poesia, onde marcadamente se faz sentir a tradição e o gosto popular. No nosso país, o culto do Deus-Menino remonta aos primórdios da nacionalidade, muito embora a moda trovadoresca dos provençais haja desviado as atenções palacianas para os assuntos mais mundanos e pagãos. De qualquer modo o nosso «Cancioneiro Geral» dá-nos, ainda assim, alguns belos exemplos da temática bíblica onde, naturalmente, assume posição de destaque o nascimento de Jesus.
Será, todavia, Gil Vicente, no século XVI, quem irá fazer da simbologia natalícia um objecto vivo e cheio de significado, nos autos de Mofina Mendes e dos Quatro Tempos. Segue-se-lhe Baltasar Dias, que, no espírito da Escola Vicentina, compôs o Auto do Nascimento, abrindo, por assim dizer, as portas a uma autêntica avalanche literária, toda ela virada para os problemas inerentes à Natividade.
Desde então o Natal tem sido ponto de encontro dos vultos mais proeminentes da literatura nacional. Recordo, por exemplo, Almeida Garrett na Lírica de João Mínimo, Júlio Dinis nas Pupilas do Senhor Reitor, as Farpas, de Ramalho Ortigão, os contos de D. João da Câmara, Raul Brandão, Fialho de Almeida, e, por fim, as poesias de António Feijó, Fernando Pessoa, Miguel Torga, Vitorino Nemésio, David Mourão Ferreira, e outros poetas das gerações mais recentes.
Nos tempos que correm, a Natividade deixou de ser simplesmente um tema bíblico para se transformar num acutilante tema de contestação político-social, revoltadamente acusatório das disparidades económico-sociais existentes na sociedade moderna.
Na transição do Natal erudito para o Natal popular, podemos verificar, de região para região, sensivelmente os mesmos sentimentos. Porém, estes são extrovertidos de acordo com a sua própria cultura. Daí o Natal algarvio apresentar poucas variantes entre os seus concelhos, muito embora se note uma acentuada diferença na conservação dos costumes entre o litoral e a serra.
De qualquer modo, é nas gentes marítimas que se verifica maior devoção contrastando estas com o paganismo das aldeias do interior. Ora é na freguesia de Moncarapacho, no concelho de Olhão, que mais se acentua esse carácter profano, materializado na constituição de grupos musicais que, na maior parte dos casos não vão além de seis elementos, e aos quais o povo baptizou de «charolas» ou «charoleiros».
Efectivamente, esses grupos musicais que transportam um vistoso estandarte, calcorreiam os vários lugares da freguesia, não lhes escapando o monte mais íngreme ou o cerro mais inóspito. Em chegando à soleira das portas, o ensaiador do grupo popularmente cognominado de o «principiador» canta alegremente, em toada rápida, mas estridente, uma quadra alusiva ao Natal, sendo logo corroborado pelos restantes elementos que, em coro, repetem os versos.
A música que lhes serve de fundo é tocada com instrumentos bem populares, por vezes nada ortodoxos, mas que ilustram a alegria e o poder de improvisação deste povo. Os moradores respondem com vivas e aplausos, consolidados pela oferta de filhóses, pastéis de batata-doce, figos, pinhões e, naturalmente, regados com a boa aguardente de medronho.
As «tournées» das charolas são verdadeiramente extenuantes, pois que, geralmente, percorrem vários quilómetros desde o anoitecer até ao raiar da madrugada. Curiosamente, de ano para ano, os charoleiros vão marcando as portas, de tal forma que só cantam para aqueles que no ano anterior os receberam favoravelmente. Assim, louvam os seus «benfeitores» com orações e quadras, especialmente criadas para o efeito, sendo algumas delas bem agradáveis de ouvir. No caso dos donos da casa não contribuírem com o respectivo óbolo, então os charoleiros vingam-se entoando quadras de carácter depreciativo, por vezes insultuosas, as quais o povo chama de «chacotas».
Ilustremos o que acabamos de afirmar com alguns exemplos. Assim, aos generosos «benfeitores» são dedicados versos como estes:

Esta casa é bem-feita
E talhadinha ao pico;
À gente; que nela mora
Deus lhe dê a salvação.

Ou então:

Esta casa é bela casa
É casa de um lavrador;
A mulher é mui formosa,
A filha é uma flor.

Porém, àqueles que se recusam a abrir a porta são-lhes atiradas chacotas às vezes muito desagradáveis:

Esta casa não é casa,
É casa de algum escrivão;
Tem a mulher bexigosa,
A filha como um tição.

Ou então:

O toucinho é muito duro,
Uma faca não o corta;
Mande dar a esmolinha,
Se não faço asneira à porta.

Como é evidente, estas chacotas nem sempre acabavam bem, não sendo raros os casos em que os charoleiros batiam em desordenada retirada frente ao temperamento pouco acolhedor de algum conterrâneo mal-humorado e de caçadeira em punho. De qualquer maneira; uma noite de charolas em que não se cantassem chacotas não era noite de festa. E estas “charoladas”, diga-se de passagem, não se executavam apenas na noite de Natal, pois que se repetiam igualmente, talvez com mais calor, na noite de passagem de ano e, sobretudo, nos Reis.
Presentemente, a tradição mantêm-se, no entanto, por a sua força se manifestar mais ruidosamente nas noites do Ano Novo e dos Reis, é frequente confundir-se as charolas com o cantar das Janeiras. Contudo, os versos são bem diferentes, dependendo, obviamente, das datas a festejar.
Assim, no Natal entoavam-se cânticos tão belos quanto estes:

Cantemos, vamos cantar,
Cheios de santa alegria
Que nasceu Deus Menino,
Filho da Virgem Maria.

Nasceu p'la meia-noite
Dum tão memorável dia
O Salvador deste mundo
Filho da Virgem Maria.

Nasceu no meio da pobreza
Como reza a profecia
Descendo do céu à terra
O desejado Messias.

Nasceu em pobre arramada
Onde boi e mula havia,
Sem mantas nem cobertores,
Em uma noite tão fria.

Nas vésperas do Ano Novo, as Janeiras ressumam um sentimento mais dramático e emocionante, quando cantadas no género destas que passamos a citar:

Esta noite é de Ano Bom,
É noite de mer’cimentos,
Por ser a primeira noite
Que Jesus sofreu tormentos.

Foram eles tantos, tantos,
Que até a carne lhe cortaram;
O Menino ficou, ferido,
Pingas de sangue lhe tiraram.

Foram três pingas de sangue,
Não nas deixem apanhar:
Uma é para o povinho.
Outra é para o jantar
E das três a que sobrar
Essa é para o Deus Menino.

As Janeiras não se cantam,
Mas nós vimo-las cantar,
Pedindo anos melhorados
E longa vida gozar.

Quanto às cantigas dos Reis, vulgarmente denominadas “reisadas”, verificámos que o seu carácter é mais histórico, versando sobretudo a viagem dos três Reis Magos pelos áridos desertos:

Quem são os três cavaleiros
Que fazem sombra no mar?
São os reis do Oriente
Que a Cristo vêm adorar.

Lá das bandas do Oriente
Os três Reis Magos se partem;
Guiados por uma estrela,
Vêm ver outro Sol que nasce.

Esse Sol dizem que é Cristo,
Filho do Eterno Pai,
Que vem salvar este mundo,
Revestindo humana carne.

Aquele Herodes malvado,
Mui perverso e daninho,
Mandou ensinar aos Reis
Às avessas o caminho.

Terminadas as cantigas, os charoleiros batiam às portas na esperança de os atender um anfitrião que tivesse o menino bem «armado», isto é, que no presépio não faltassem as iguarias repartidas por vários andares numa escalada sucessiva, como se de uma Torre de Babel se tratasse.
Nas residências dos ricos lavradores não faltava, por isso, um “lauto presépio” de linguiça, presunto, carnes variadas e deliciosos pastéis de mel, filhós, bolinhos e empanadilhas de batata-doce, tudo decorado com frutos secos da região. No final, bem aquecidos e inspirados na cálida medronheira algarvia, reuniam-se as charolas em local previamente marcado, geralmente no largo da aldeia, onde encetavam concursos, renhidos combates, entusiásticas competições e despiques, tudo isto ao som instrumental das modinhas populares, às quais as moçoilas correspondiam com um pezinho de dança.
Actualmente, as tradições etnográficas vão-se paulatinamente esbatendo, em parte por falta de incentivos que garantam a sua manutenção e sobrevivência. Apesar disso, subsistem ainda alguns agrupamentos espalhados por esse Sotavento algarvio, com especial destaque para os concelhos de Loulé, Olhão e Tavira. E no domínio da literatura oral o Algarve foi, e continua a ser ainda hoje, uma fonte inesgotável do romanceiro nacional.
É costume dizer-se que no algarvio sobressai um inatismo poético. De facto, também aqui não é estranha a tradição enraizada na cultura árabe que, neste vasto amendoal, cultuou a lira de Orfeu durante séculos. Foram tempos de grande prosperidade cultural jamais igualados pelos sucessivos reinados cristãos.
Mas, desses tempos ficou-nos o exemplo e a inspiração dos poetas da estirpe de João de Deus, Bernardo de Passos, João Lúcio, Cândido Guerreiro. Emiliano da Costa, Júlio Dantas, António Aleixo e muitos outros mais recentes que, por não confiarmos na memória, nos escusamos de referir.
No entanto, e apesar dos poetas que acabamos de nomear não terem versejado ao gosto popular, à excepção de António Aleixo, não podemos deixar de remeter o leitor interessado no estudo da literatura oral e popular, para o valioso espólio recolhido pelo rev. Dr. Francisco Xavier de Ataíde Oliveira, o qual se encontra compilado na obra Romanceiro e Cancioneiro do Algarve. Através dessa notável colectânea podemos hoje comprovar quão rico foi o nosso povo nas suas danças e cantares tradicionais. Perante tão abundante fonte não será por certo difícil extrair dela agora uma Antologia de “remances” e quadras populares dedicadas ao tema da Natividade.
Relativamente ao teatro de tradição oral, obviamente convertido em verso, convém referenciar o Auto da Pratica dos Três Pastores, que remonta ao século XVII e cuja autoria é atribuída, segundo Teófilo Braga, a Frei António da Estrela. Todavia, foi o mesmíssimo Auto recolhido por Ataíde Oliveira no concelho de Loulé, onde era amiudadamente representado pelo povo local, julgando por isso que o seu autor fosse daqui proveniente.
Seja como for, a autoria desse auto, por uns atribuída a Gil Vicente, por outros a Frei António da Estrela, e, finalmente, por Ataíde Oliveira à pena de Domingos Carneiro, não deixa de ser um imbróglio, tão significativo quanto enigmático, para os estudiosos do teatro popular e da cultura portuguesa.
Efectivamente, o «Auto dos Três Pastores», que figura entre os dez mais importantes autos de Natal pertencentes ao teatro popular português, não é absolutamente o mesmo que a Dr.ª Carolina Michaelis de Vasconcelos editou há décadas atrás, pelo que urge fazer uma edição crítica da peça, procurando; tanto quanto possível, identificar-se o texto com o seu presumível autor.
O Algarve encontra-se, assim, bem representado em matéria de teatro sobre o Natal, havendo, estamos certos, outros autos por recolher nos recônditos meandros da serra algarvia. As orações, as canções, as adivinhas, as anedotas e os ditos, são um manancial inesgotável do empirismo popular. É urgente pesquisar e recolher essa riqueza, sem a qual a cultura portuguesa se acha, dia após dia, cada vez mais pobre.

(artigo publicado no Suplemento de Natal do «Diário de Notícias», edição de 25 de Dezembro de 1981)

sábado, 27 de novembro de 2010

O Órgão da Sé de Faro - do pouco que se sabe ao muito que se presume

Junto ao coro alto, na nave esquerda da Sé de Faro, encontra-se um belo e majestoso órgão, de perceptível traço joanino, de tonalidade acharoada, decorado com cenas bucólicas de inspiração chinesa, emoldurado em talha dourada, constituíndo um resplandecente conjunto artístico, sem paralelo no nosso país. Trata-se de uma peça de inegável interesse histórico e cultural, que no contexto do património musical algarvio assume lugar cimeiro e até de particular relevo no acervo artístico português.
Nesta trabalho analisam-se não só as suas origens históricas, como a autoria, os restauros e até a existência de uma peça gémea no Brasil desta notável jóia artística do património musical português.
Em torno do chamado Órgão Grande da Sé Catedral de Faro gerou-se uma questão de capital importância, que consiste, tão simplesmente, na sua origem cronológica e na consequente aquisição do mesmo por parte do cabido farense. O desconhecimento deste pormenor é, por si, suficiente para fazer desmoronar algumas das opiniões formuladas sobre o assunto e, com isso, obrigar a reformular as investigações precedentes.

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Florbela Espanca no Algarve (parte II)

José Carlos Vilhena Mesquita Como já se disse, a permanência de Florbela Espanca em Quelfes não foi relevante e julgo que se desenrolou ao longo de apenas seis meses, de marasmo, sossego, solidão literária e exílio, pouco conformes ao seu natural estado de espírito. Amiúde vinha a Faro visitar o cunhado Manuel e consultar o seu médico assistente, então conhecido pelo «Doutor Índio», visto se tratar de um canarim natural de Goa, que gozava de grande fama em toda a província, especialmente no campo das doenças pulmonares, que rigorosamente lhe impunha um tratamento de repouso absoluto. Escusado será dizer que Florbela detestava ir a Faro, só porque o médico a submetia a minuciosos exames. Como, aliás, detestava Olhão por não suportar o cheiro fétido e pestilento que ressumava da Ria. Apesar disso, gostava do seu alvo casario e, especialmente, adorava ver o pôr-do-sol que, afirmava já mais ter visto espectáculo tão belo. Curiosamente, estranhava o facto de no Algarve o Sol nascer sobre o mar e pôr-se no mesmo mar sobre o qual se elevara. Tratava-se de um acontecimento raro, esquisito e que contado aos seus amigos alentejanos passaria, naturalmente, por uma ingénua balela. No entanto, existem sonetos que recordam esses momentos inesquecíveis, marchetados pela natural beleza de um sol inebriante, que empresta a este céu aquele azul extasiante que só os poetas sabem cantar, reflectido nesse mar imenso que atraiu os argonautas lusitanos para revelarem ao mundo novos mundos nunca antes navegados. Convém notar que apesar de Florbela Espanca não aceitar de ânimo leve as imposições do «Dr. Índio», o certo e que ele era a única pessoa que a compreendia, que com ela discutia os problemas da psique, confessando frustrações mútuas, discutindo literatura e revelando-se, tal como ela, um grande cultor da poesia de Verlaine. Antero de Quental. António Nobre, etc... Também o conceituado médico era um infeliz que cedo perdera a esposa, igualmente vitimada por um aborto mal curado. Quão parecidos eram seus fados! «O médico vem a casa regularmente, receita, aconselha, demora-se com certeza junto dessa doente que fala de António Nobre e de Verlaine. (...) O médico é o seu único amigo, no plano de compensação do seu processo psíquico. Ele dá nomes transfigurados e tranquilizantes da natureza dos seus males. Com ele pode falar à vontade, caracterizar a doença quando a descreve ao nível clínico. Os segredos não são precisos, porque essa história clínica e uma libertação para eles, sem lhes impor uma culpa».[1] Florbela, desesperada de nada fazer, passando os dias deitada, comendo, escrevendo, meditando, sem nunca se levantar da cama. Recomendação que o médico lhe exigira cumprimento e que ela estritamente se via compelida a executar. No entanto, apesar dessas visitas que o seu médico assistente fazia ao «ermitério de Quelfes», e não obstante o contacto que mantinha com o exterior através das cartas dirigidas ao pai, à futura madrasta, ao irmão e aos amigos, o certo é que a sua situação psíquica ultrapassava já o estado da saturação, agravando-se progressivamente aquela fatídica neurose que a arrastará para a morte nas vésperas da publicação do seu livro mais querido: Charneca em Flor. Estou tão triste e aborrecida! Tenho ódio ao Algarve. Será exactamente esse ódio, essa inconstância, essa inatingível procura da felicidade, que irá determinar a sua separação e consequentemente o seu divórcio de Alberto de Jesus Silva Moutinho, nessa altura (1921) um considerado funcionário bancário de Vila. Nova de Portimão. Terminado o tratamento que confirmara o depauperamento físico suscitado por um aborto, invalidando assim a hipótese de doença pulmonar, Florbela escuda-se com os seus compromissos académicos e parte sozinha para Lisboa, onde conclui, com aproveitamento, o primeiro ano do curso de Direito. Matricula-se nas cadeiras do ano seguinte e regressa a Évora onde se reunirá aos seus familiares, trazendo já na ideia a publicação do seu primeiro livro. E assim, no ano seguinte, dá a público O Livro de Magoas cujo título anuncia já o seu temperamento, o espírito magoado de uma mulher que sofre de uma pluralidade interior: «De não ser Esta... a Outra... e mais Aquela...! De ter vivido e não ter sido Eu». O espectro da fama, a ansiedade de ser conhecida, admirada, respeitada, o desejo de poder impressionar com o seu talento os amigos e os desconhecidos, de acelerar a inveja dos seus inimigos, são tudo sintomas de uma estreante autora que sonha com as palavras do pai: «Serás uma Espanca que há-de ficar». Desinteressada pelo passado, move uma acção de divórcio contra o seu marido, fundamentando-se no abandono de que havia sido vítima durante três anos. Servindo-se do testemunho de um farmacêutico amigo e de um oficial de diligências do próprio tribunal, consegue que na cidade de Évora, a 30 de Abril de 1921, fosse notificado o seu divórcio de Alberto de Jesus Silva Moutinho, pacatamente fixado na piscatória vila de Portimão, regaladamente livre dessa mulher, dessa diva que ele mimoseou com todo o sacrifício que as suas parcas possibilidades lhe proporcionaram. A irmã do marido, a professora Doroteia Moutinho, permaneceu em Quelfes, desiludida com a cunhada mas, ao mesmo tempo, admirando o seu talento com aquela piedade de quem sente pelos doentes a ternura de um perdão eterno. Tempos depois a bondosa Doroteia casaria com um abastado proprietário rural, muito conhecido no meio, José de Sousa Guita, de seu nome, que por curiosidade era o dono da escola e da casa onde habitara, e onde se albergara a insatisfeita poetisa de Vila Viçosa. Infelizmente, já todos desapareceram, tanto os familiares de Florbela como os de seu primeiro marido, restando apenas a geração que se lhe seguiu, agora muito dispersa por Lisboa, Évora, Portimão e Beja. Florbela Espanca casaria mais duas vezes. Primeiro no Porto, com António José Marques Guimarães, de 26 anos, ao tempo alferes de Artilharia da Guarda Nacional Republicana. Cerca de dois anos depois, divorcia-se daquele militar para se consorciar, logo a seguir, com o médico Mário Pereira Lage, de 32 anos, com quem permaneceu até à morte. No dia 7 de Dezembro de 1930, às 22 horas, suicidou-se na sua residência da Rua 1.º de Dezembro, em Matosinhos. No dia imediato, data do seu aniversário, descia à terra um corpo de 36 anos, cuja existência atormentada havia sido dilacerantemente sacrificada ao génio narcotizante de uma lírica mística e pagã, eivada de um certo narcisismo insatisfeito. Para terminar, gostaríamos de aqui, nestas mesmas colunas que em Janeiro de 1931 pela voz de António Ferro, logo corroborada por Lopes de Mendonça, D.ª Cândida Aires, Bourbon e Menezes, e, por fim D. Fernanda de Castro, defenderam, sustentaram e venceram a ideia de em sua memória se levantar um monumento; se pugnasse hoje, meio século volvido, pela incrustação de uma placa comemorativa da sua presença naquela modesta casa de Quelfes, onde Florbela Espanca receou enfrentar o mesmo espectro que 12 anos mais tarde ceifaria um dos mais notáveis talentos poéticos deste século e de toda a literatura portuguesa. [1] Agustina Bessa Luís, Florbela Espanca, a Vida e a Obra, 2.ª ed., Lisboa, Ed. Arcádia, 1979, p. 68.
(artigo publicado no «Diário de Notícias» em 6 de Agosto de 1983)

sábado, 23 de outubro de 2010

Florbela Espanca no Algarve (parte I)

J. C. Vilhena Mesquita A fugaz passagem de Florbela Espanca pelo Algarve tem sido pouco estudada pelos seus biógrafos que, naturalmente, se têm mostrado muito mais atentos aos factos que marcaram directamente a sua amarga existência. Porém, permitam-me que discorde da macrobiografia e que modestamente me embrenhe na obscuridade dos episódios pouco conhecidos, «a priori» irrelevantes, mas que teremos de admitir, constituem os microfactos, na maioria dos casos, indispensáveis e urgentes para o desvelamento dos chamados «acontecimentos notáveis». Pois, na vida de Florbela d'A1ma da Conceição Espanca, verificam-se muitos «pontos negros», que apenas se afloram sem que, contudo, se penetre no cerne das suas origens, na essência da sua constituição. Ora, a permanência daquela poetisa em terras do Algarve não tem constituído, ainda, um objecto de investigação para os ensaístas da nossa literatura ou para os historiadores da nossa cultura, talvez porque a sua estada foi efémera, transitória e indelével. A razão da transferência daquela poetisa alentejana para a pacata Aldeia de Quelfes, no concelho de Olhão, prende-se com questões de saúde e data da Primavera-Verão de 1918. Nessa altura, Florbela já campeava nos jornais, mormente no «Notícias de Évora», creditando-se como uma jovem poetisa de rara sensibilidade, espelhando desde logo uma inspiração transcendente e mística, de uma beleza algo amarga. Vinha atraída pelo clima ameno, de ares puros e grande calmia, que então se vivia na orla marítima desta província. A sua doença aparentava sintomas de tuberculose e a prudência aconselhava-a a fugir dos ares poluídos e da vida atribulada, que experimentara como estudante do 1.º ano de Direito da Universidade de Lisboa. Nessa época Florbela era já uma mulher feita. Tinha 24 anos de idade e era casada com Alberto de Jesus Silva Moutinho, mais velho do que ela um ano. A sua vida conjugal prolongava-se desde há cinco anos e um aborto, associado a um estado de espírito verdadeiramente inconstante, degenerara num esgotamento físico-psíquico muito próximo dos sintomas da tuberculose. Restava-lhe escolher o local mais apropriado ao seu completo restabelecimento. Escolheu Quelfes. Porque? É simples! A zona da beira-serra algarvia que se estende desde os Vilarinhos, passando por Alportel até Moncarapacho, era muito aconselhada pelos médicos havendo inclusivamente a salientar a existência de uma sanatório no lugar de Almargens, no concelho de S. Brás de Alportel, originariamente destinado ao tratamento dos trabalhadores dos caminhos-de-ferro. Além disso, o pai de Florbela, o conhecido antiquário João Maria Espanca, era muito bem aceite por estas bandas, que frequentemente visitava na ânsia de encontrar e adquirir objectos de arte de comprovado valor e antiguidade. Portanto, tudo leva a crer que conhecendo bem a região e sabendo por experiência própria o quanto ela era benéfica no tratamento de tais doenças, tenha aconselhado a filha a vir para o Algarve, em vez de demandar as terras altas do Norte. Acrescente-se a tudo isto, o facto de em Faro residir o irmão de seu marido, o Manuel, de que era grande amiga, e cujo fraternal afecto conservou até à morte. Nada nos repugna afirmar que a seu alvitre resida mais uma das razões que motivaram a sua permanência nesta província. Mas, nessa altura, atendendo à amizade que a unia ao cunhado, porque não escolheu antes a cidade de Faro? Muito naturalmente porque nesta cidade os ares não seriam tão propícios à sua doença quanto os de Quelfes, que se situa na zona do chamado Barrocal, área morfologicamente intermédia à serra, e ao litoral. Mas, nesse caso, porquê Quelfes e não Moncarapacho, por exemplo? Ora aí é que reside a principal questão! E a explicação foi-nos revelada pelo Dr. Antero Nobre, grande investigador da cultura e da história olhanense, que, não há muito tempo, lançou de balde o alvitre de na casa que Florbela Espanca habitou, que felizmente ainda existe, se colocasse uma lápide, assinalando, com inteira justiça, a veracidade do facto. Infelizmente, o dono do imóvel recusou-se a permitir tal «sacrilégio», talvez com medo que assim se impedisse a futura hipótese de naquele lugar vir a construir um prédio novo. E a ideia morreu sem ter qualquer seguimento, apesar de mesmo assim se ter iniciado uma subscrição pública para comportar as despesas de elaboração da referida placa comemorativa. Enfim…, coisas que só acontecem no Algarve. Mas estava eu dizendo que a explicação da sua fixação em Quelfes reside no facto de aí se encontrar colocada como professora primária uma irmã solteira do marido, que se chamava Doroteia, e que partilhava a residência com uma amiga. Logicamente que ela era a pessoa mais indicada para os ajudar pois residia no local apropriado ao tratamento de Florbela e, além disso, tinha conhecimentos suficientes da vila de Olhão que permitissem ao irmão ganhar a vida como explicador de matérias liceais, trabalho esse que ele já havia desenvolvido nos concelhos de Redondo e de Évora. Inclusivamente era esse o único ganha-pão do casal, muito embora o pai de Florbela já patrocinasse os estudos da filha contribuindo com uma mesada que, associada aos rendimentos do Alberto Moutinho, era substancialmente capaz de permitir a sobrevivência de ambos. Portanto, atendendo a que Olhão Se encontrava a dois quilómetros da casa da irmã e que aí existia um colégio onde podia exercer a sua actividade de explicador, o Alberto Moutinho concluiu, naturalmente, que não valia a pena pensar duas vezes. E assim aconteceu. Fixaram-se em Quelfes, muito provavelmente desde Março de 1918 até Setembro desse mesmo ano. Uma efémera estada, portanto. Contudo, foi suficiente para que Florbela se restabelecesse dos achaques provocados pelo aborto e pudesse, inclusivamente, dedicar-se à meditação poética, à produção de alguns sonetos, que mais tarde foram reunidos em livro. Curioso será notar que a amenidade do clima algarvio e a placidez da aldeia de Quelfes vão estar na base da separação do casal e no seu consequente divórcio. Assim, enquanto o marido, mais calmo e sensato, preferia a segurança e a tranquilidade da província, situação que mais se coadunava com o seu espírito modesto e resignado, capaz de viver com as maiores dificuldades, sem que isso constituísse uma verdadeira desgraça; Florbela, ao invés, preferia o luxo, o convívio com gente culta, mais de acordo com o seu feitio e com as suas carências afectivas. Florbela amava a cidade, o movimento e o rebuliço, a sua roda de amigos e, especialmente, sentia uma vontade intrínseca de ser adorada, na expressão mais sublime do termo. O marido não podia regular-se pelo mesmo diapasão. Daí a sua incompatibilidade. Efectivamente, não se pode dizer que Florbela Espanca tenha sido feliz nesta sua torturante permanência em Quelfes. Assim se comprova através de breves passagens das suas cartas, datadas de 19 de Abril, 18 de Maio e de 5 de Junho, justamente compiladas em livro por Azinhal Abelho e José Emídio Amado, Cartas de Florbela Espanca (1949), nas quais faz transparecer a sua desilusão, o seu desencanto a sua, ao fim e ao cabo, permanente frustração. «Estou farta disto tudo. Se me vejo daqui para fora não acredito, mas o raio do médico diz que se me vou embora que não duro seis meses e eu tenho medo.» Mas ainda mais saturante e dramática poderá considerar-se esta passagem: «Não me digas que fico cá até ao fim da vida. Era melhor dar um tiro nos miolos.» A solidão da aldeia igualmente atormentava o seu espírito sequioso de comunicação, de carinho, de afecto, de admiração, de fama…, com a qual sempre sonhou, mas que só veio a obter depois da morte. «Não imaginas como eu passo os dias aborrecida. Não há ninguém com quem a gente possa conversar.» Tal como muito bem observa Agustina Bessa Luís, «todas as suas perturbações, a emoção exaltada, o esgotamento, as insónias, a intolerância aos alimentos, às pessoas, ao género de vida, a tuberculose encoberta, as dores de cabeça, as infecções, toda a espécie de repugnâncias físicas e morais, anunciam a instalação da neurose. Provavelmente com o desgosto sexual aparece o grande motivo desentendimento no matrimónio.»[1] No entanto, é errado pensar-se que ambos viviam numa situação económica matizada por privações insustentáveis e adversas ao seu espírito, já que o contrário se comprova através de uma carta, datada de Junho de 1918, na qual se verifica que o Alberto Moutinho ganhava cerca de 45$00 mensais como explicador, e que, acrescido do ordenado da irmã e da mesada que recebia do pai, dava perfeitamente para levarem uma vida desafogada. (artigo publicado no «Diário de Notícias» em 5 de Agosto de 1983) [1] Agustina Bessa Luís, Florbela Espanca, a Vida e a Obra, 2.ª ed., Lisboa, Ed. Arcádia, 1979, p. 46.